[box type=”warning” align=”alignleft” class=”” width=””]Este artigo pode ter imagens e frases que podem ferir a susceptibilidade de jovens ou pessoas que estejam a sofrer de depressão e automutilação. Pretendo dar o meu testemunho como jovem que se automutilou durante alguns anos e jovem que sofreu (e sempre sofrerá) de depressão. O artigo irá ser composto de passagens do diário que mantive na pior altura da minha vida, excertos de websites e texto em que conto a minha experiência com automutilação. Estarão também presentes duas fotos contendo cortes e sangue.[/box]
Dia 31 de Janeiro de 2013, cortei-me pela primeira vez. Sofria de uma depressão que até então tinha estado adormecida. Nos dois anos seguintes travei uma batalha com a minha mente, auxiliada por psicólogo, psiquiatra e amigos. Essa longa batalha foi uma das mais difíceis que enfrentei porque o “inimigo” era eu própria. A automutilação foi uma maneira de poder sobreviver à depressão que me assolava.
01/02/13:
Sou tão… uma pessoa tão má que me custa a acreditar. Posso ser honesta? Cortei-me ontem. Pela primeira vez. Não foi muito fundo. Fiz alguns leves, uns quatro para me habituar. Os quatro seguintes ainda hoje estão marcados. Porquê? Ajuda-me a manter na realidade. Ajuda realmente. Traz-me de volta à realidade enquanto me distrai. Faz-me relembrar e ao mesmo tempo superar. A dor física é mais fácil de aguentar que a psicológica. Nunca pensei dizer ou concordar com pessoas que se cortam.
Sempre pensei que…como hei-de dizer? Estavam enganados, cortar não ajudava. Quero ver até onde posso ir; soltar-me no meu corpo.
Quero sentir o ardor. Alguma coisa que me traga de volta à realidade.
Uma das coisas mais difíceis de as pessoas entenderem é que a automutilação não é sinónimo de desejo de suicídio. Muito muito pelo contrário. Falando por mim e por todas as pessoas com quem falei sobre o assunto, a automutilação – seja de que maneira for – é uma tentativa (por menos saudável que seja) de lidar com todos os sentimentos que nos assolam. Para mim, era uma maneira de poder calar todas as vozes, poder libertar aqueles sentimentos que pareciam que queriam sair.
Era como se estivesse com a cabeça tão cheia, com o coração tão cheio de pensamentos e de emoções negativas, que a única maneira de os libertar era automutilando-me, concentrando-me noutra coisa.
Até então, até ao dia 31 de Janeiro de 2013, sempre achei que as pessoas que se automutilavam eram tontinhas.
A automutilação surge quando lidar com a dor física se parece mais fácil do que lidar com a dor e o sofrimento emocional. Escola Saudávelmente
Quem faria uma coisa dessas? Causar dor própria? Já tinha mais que dores suficientes, obrigada, mas, nesse dia, algo mudou. A minha dor mental, os meus pensamentos negros continuavam a crescer, até ao dia em que algo teve que mudar – mais tarde foi-me dito que tive uma depressão quase toda a minha vida mas acontecimentos levaram a que se manifestasse naquela altura apenas.
A minha automutilação consistia em cortar-me, tal como a maioria das pessoas que se automutilam. É o mais fácil de fazer e de arranjar. Qualquer coisa serve para um corte.
A primeira vez que me cortei usei uma tesoura. Foi algo impulsivo, teve de ser, tinha que me libertar da torrente de sentimentos que ameaçavam sair cá para fora. E assim foi. Como puderam ler no primeiro excerto, foram cortes leves.
04/02/2013
Parte de mim quer afundar e ir-me abaixo mas outra parte quer resistir e estudar e ter boas notas. Interrogo-me porque tenho e de onde vem esta vontade de cá continuar. Durante quase uma década mantive-me à
tona. Puxavam-me para baixo mas mantinha-me sempre à superfície, independentemente da vontade ou facilidade em ir ao fundo.
Algo que aprendi naqueles anos de automutilação é que os cortes mais leves são os que doem mais. Uma vez que o “objectivo” é causar dor física que dure o suficiente para nos distrair das outras dores, quantos mais cortes leves forem feitos, mais tempo a dor dura.
Existem muitos tipos de comportamentos de automutilação, por exemplo, cortar-se (utilizando lâminas, facas ou outros objetos afiados), beliscar-se, esmurrar objectos (como uma parede), queimar-se (utilizando cigarros, fósforos ou velas), arrancar o cabelo ou tentar partir ossos do próprio corpo. Escola Saudávelmente
O grande grande problema da automutilação é que os cortes cicatrizam. A dor é apenas passageira, demasiado passageira. Então? O que se faz? Corta-se mais. Mais cortes, cada vez mais fundos. Tudo para poder parar a dor que nos assola, os sentimentos que borbulham no nosso peito, aqueles pensamentos negativos.
Eu conseguia exprimir os meus sentimentos. Usava a escrita para o fazer, como podem ver em algumas passagens do meu diário espalhadas pelo artigo. Automutilava-me principalmente para me castigar, porque considerava que era uma puta, uma cabra, uma idiota que só merecia castigo. Cortava-me também para poder parar de sentir, parar de pensar. Contudo, como disse, os cortes saram. Deixam de doer. E a única maneira de parar de pensar, de me castigar, era cortar. Cortar mais vezes e fazê-los mais fundos. Era um círculo vicioso.
Para alguns adolescentes que não conseguem exprimir os seus sentimentos de outra forma, a automutilação é vista como uma forma de “pelo menos sentir alguma coisa”, de se libertarem de sentimentos desconfortáveis, de se “castigarem” por se sentirem culpados ou envergonhados, de se sentirem aliviados ou de pararem de pensar/sentir emoções muito negativas (raiva, solidão ou desespero, por exemplo). Escola Saudávelmente
Aqui está, por palavras mais formais e de uma fonte fidedigna, o que tenho estado a dizer. Os cortes não tratavam o problema por detrás deles, a depressão. Apenas serviam para me afundar cada vez mais, cortar-me cada vez mais.
Apesar de acharmos que é uma maneira de lidar com os sentimentos e com as dores, estamos enganados. Só serve para nos viciarmos em cortar, porque achamos que os cortes são a solução, mas é apenas um engodo – tentamos tapar o sol com a peneira. Os sentimentos vão voltar, as dores vão voltar. A causa da automutilação, a depressão, continua lá.
Os cortes vão aumentar. O número e a intensidade. Num dia particularmente mau cortei-me mais de cem vezes no braço direito. Cheguei a cortar-me nas pernas. Os braços eram o meu “sítio preferido” pois eram os locais que melhor davam para ocultar. Também eram o que estavam – perdoem-me a expressão – mais à mão.
21/02/12
A escrita já quase não me diz nada. Bem como a leitura. A leitura ainda me diz menos.
Tenho continuado a cortar-me. Estou a divagar, já conto tudo. A psicóloga acabou por dizer que era melhor eu ir a uma consulta com um psicólogo e tomar medicamentos. Eu concordei. Pouco me importava. Nada me diz nada. Disse ainda que a depressão que há muito estava adormecida
estava a regressar, a acordar. Concordo plenamente.
Uma das razões principais da automutilação é o desejo de controlar a dor. Já mais ninguém decide quando nos magoar. Já não precisamos mais de sofrer às mãos dos outros. Eu controlo a dor, eu controlo quem me magoa.
No início do artigo disse que me cortava para me castigar. Correcto, mas também o fazia para ser eu a magoar-me. Eu decido quem me magoa e só eu me magoo. É uma maneira das pessoas tentarem controlar nem que seja uma ínfima parte da sua vida.
17/03/2013
Ao ler este diário, consigo ver quão puta sou. Quero cortar-me.
Sentir algo. Dor, amor, ódio, o que seja. A dor dura mais tempo e magoa menos. Como explicar cortar? Antes de o ter feito pela primeira vez, tampouco compreendia como sentir dor podia ajudar. Como aguentavam. Hoje sei. Também me fazia impressão mas compreendia. Cortar dói. Mas não é aquele tipo de dor que “dói”. Se alguém me tocar nos cortes, reclamo. Se tiver dores à exceção das que eu própria crio… reclamo. Acho que é porque sou eu a criá-la. Eu controlo a dor.
Ouvi muitas vezes que eu cortava-me para “chamar a atenção”. Ouvi-o, inclusive, de colegas da minha turma do secundário.
Os adolescentes que se auto mutilam não o fazem apenas para “chamar a atenção”. A automutilação é um problema de Saúde Psicológica. Escola Saudávelmente
As pessoas não sabem lidar com um adolescente que sofra tanto que a sua única solução é a automutilação. Fazem então o que fazem melhor – minimizam a situação, ridicularizam. Basta ouvir o adolescente, basta prestar atenção. Não me digam que o adolescente o faz para “chamar a atenção”, que é mimado e que gosta de atenção. Tentem entender que só alguém verdadeiramente em baixo se automutila.
A automutilação é o último recurso – “Estou a sofrer, ajudem-me”.
Procurem ajuda. PROCUREM AJUDA.
Nada é mais importante do que ajuda psicológica e psiquiátrica. A pessoa TEM que querer ajuda, tem que querer ser ajudado, sim. Isso também é fundamental. Mas não é um pai dizer ao filho para parar de se cortar que vai ajudar. Não é falar com os amigos que vai resolver a situação, que vai “curar”.
04/04/2013
Há dois dias o meu professor de Português falou comigo. Já tinha lido a pequena amostra que lhe mostrei. Mostrou-se surpreendido e perturbado.Há dois dias ainda me disse algumas coisas como, por exemplo, que tinha que parar de me cortar. Que não o podia fazer. Que ainda só vou sofrer mais. Que não é uma reação certa. Pediu-me para imaginar o que aconteceria se me cortasse sempre que tivesse um problema. Para imaginar se todas as pessoas do mundo se cortassem.
A minha resposta? Estou-me a foder. O que aconteceria se me cortasse à mínima coisa? Guess what, JÁ ME CORTO POR TUDO E POR NADA. O que vai acontecer se continuar a cortar mais? FICAREI SEM ESPAÇO. PASSAREI A CORTAR-ME MAIS E MAIS. Nas pernas. Barriga. Ombros.
Não me corto porque é divertido. Porque adoro fazê-lo. Nem para chamar a atenção. É a minha maneira de continuar a viver. É, ao mesmo tempo, uma chamada de atenção. Estou a afundar-me. Cada vez mais.
Comecei a ter ajuda psicológica e psiquiátrica. Comecei a tomar anti-depressivos e um comprimido para me ajudar a acalmar, a adormecer. Durante duas a três semanas parecia um zombie a andar. Estava num estado dissociativo, até o meu corpo se habituar à medicação. Os medicamentos ajudaram a colocar-me num estado em que podia falar, em que podia falar com um psicólogo e tentar melhorar.
Se o seu filho tem comportamentos de automutilação é fundamental procurar ajuda de um Profissional de Saúde. Um Psicólogo pode ajudar o seu filho a encontrar outras formas de lidar com os problemas e as emoções e a ajudá-lo a si a lidar com a situação. Escola Saudávelmente
Tive recaídas, é óbvio. Que ninguém vos diga que basta aparecer um príncipe (ou princesa) encantada e quererem melhorar e curam-se. Nada disso. A recuperação é longa e muito muito árdua. É preciso querer melhorar, é preciso querer sair do círculo vicioso. Não é por terem recaídas que significa que não estão a melhorar. Não é por terem recaídas que significa que são um falhanço. Apenas quer dizer que estão a tentar.
Ainda hoje, seis anos depois, vou ao psicólogo. As “razões” da minha depressão não estão “tratadas”. Tenho marcas dos cortes, tenho as cicatrizes. Cheguei a ter vergonha delas – quando estava no caminho da recuperação desejei poder escondê-las, para ninguém ver, para ninguém me julgar. Tinha vergonha de ter tido uma depressão. A sociedade impunha que eu me escondesse, que não deixasse ninguém ver que tinha uma doença mental.
Hoje mostro-as com orgulho. Orgulho do caminho que percorri, orgulho de quem hoje sou. Mostro-as para poder ajudar os outros, para que outros as vejam e se aproximem. Para mostrar a todos, explicar às pessoas, quebrar os preconceitos que ainda hoje existem. “Sim, cortei-me e então? Sim, tive uma depressão, e então?”. Hoje estou aqui, hoje quero ajudar outros, hoje quero partilhar a minha história. “Sim, tenho cicatrizes, e então?”. As cicatrizes mostram o que lutei para aqui estar, o que sofri, o que batalhei.