(Sobre)Viver com uma doença crónica

Aos 8 anos decidi que queria ser professora de matemática e bióloga marinha. Escritora também seria porreiro. E, agora que penso nisso, acho que também queria ser veterinária. Uma pessoa podia ter mais de um emprego, correcto?

Ao longo dos anos, alguns sonhos foram-se desvanecendo. Continuo a adorar animais, mas não creio que tenha estômago para medicina. Ser bióloga marinha? No 9º ano fiz os típicos testes psicotécnicos e desisti de ir para ciências. Até então a literatura e as ciências andavam sempre a puxar-me cada uma para seu lado, mas decidi que, por uma pequena margem, as humanidades ganhavam. Adoro escrever, mas esse não é o meu maior sonho. Ensinar é.

Já falei aqui (#1, #2) do meu diagnóstico com a síndrome de Ehlers-Danlos, uma síndrome que afecta o tecido conectivo (colagénio). O colagénio está presente em todo o nosso corpo, é a cola que o mantém preso e a funcionar em condições. O meu corpo produz colagénio defeituoso – produz uma cola defeituosa. Como conseguem imaginar, a síndrome acarreta uma miríade de doenças e problemas, que afectam literalmente o corpo todo.

Basicamente, em linguagem de leigos, os meus ligamentos e tendões são demasiado lassos. Para compensar essa hipermobilidade, os meus músculos têm de fazer um trabalho que não é o deles, têm de trabalhar demasiado. Isso provoca-me dores, tendinites, inflamações, entre outros. Não consigo estar muito tempo em pé (os joelhos e os pés queixam-se), preciso de ter certos apoios nas costas quando estou sentada (problemas nas costas, costas e omoplatas), tenho muita dificuldade em subir escadas (joelhos) ou andar muito (joelhos e pés), não consigo escrever muito tempo à mão (pulso e ombro), entre outras coisas.

Mas. Com esta lista de queixumes devem-se imaginar o que raio tem ensinar ou ser bióloga marinha a ver com isto. A verdade é que fui diagnosticada há 4 anos, estava a meio de uma licenciatura em Estudos Clássicos. Continuava insistente no meu sonho de ser professora, a fazer uma pausa para angariar fundos para terminar a licenciatura. Este diagnóstico – ou melhor dizendo – as dores e problemas físicos que eu já tinha colocaram-me em baixo algumas vezes. As dores que tinha, o facto de já durarem há tantos anos, faziam com que tivesse medo que nunca mais desaparecessem. Havia meses terríveis – tudo me doía e meses em que apenas tinha as dores “normais” (o pé, o joelho, o ombro e o pulso direito).

Mas. O que raio havia de fazer? As dores eram mais ou menos toleráveis. Dias piores, dias melhores. Comprimidos para as dores nos dias em que já não aguentava mais. Muito gelo. Muito creme de efeito termogénico para as omoplatas e para as costas. Muita ida ao médico para tentar evitar que mais problemas surgissem.

Mas. Estou a seguir o meu sonho. Estou a terminar o 1º ano de Mestrado em Ensino de Português e Latim. Resido a 150 kms da minha faculdade. À segunda-feira fazia 300 kms (4 horas de viagem) para ter seis horas de aula. À terça e quarta  fazia 300 kms (4 horas de viagem) para ter duas horas de aula. À quinta-feira fazia 300 kms (4 horas de viagem) para ter cinco horas de aula. Os meus problemas de saúde pioraram. Saía de casa às 8.30h da manhã e tinha dias em que chegava às 23h a casa. Estava exausta, cheia de dores.

Mas. Continuei. Tenho um diagnóstico. Tenho dores. Há dias em que é difícil contar quantas partes do corpo me doem. Mas. Há outros dias em que só me dói o joelho. Ou apenas me dói o pulso. Mas. Estou tão perto de alcançar o meu sonho, de poder fazer por outros o que fizeram por mim, de poder ensinar, de poder trabalhar numa escola.

O caminho não tem sido fácil. Mas. A síndrome dá-me dores e eteceteras. Mas. Até hoje, tenho-me conseguido “habituar” às dores. Já as espero. Quando acordo sei que vou ter dores e, quando vou dormir, sei que vou ter dores. Passaram a fazer parte de mim. Não são elas que me vão impedir de dar aulas.

Não consigo estar em pé a aula toda? Uso uma cadeira para apoiar uma perna. Sento-me durante partes da aula. Não consigo escrever muito? Peço a algum aluno que escreva o sumário no quadro. Vai haver dias que não me consigo levantar da cama? Todos temos esses dias.

Nasci com esta síndrome. Ela vai piorar com a idade e com o quanto “uso” o corpo e certas partes. Mas. Ela não vai a lado nenhum, tal como o meu desejo de ser professora também não. É possível que um dia – provavelmente antes da idade da reforma – tenha de desistir de ser professora (ainda nem comecei). Mas. Até lá, não me doa o corpo.

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Comments 1
  1. Boa tarde,

    Gostaria de saber que médico contactou. Sempre tive problemas articulares, desloco algumas articulaçoes, tenho 31 anos e neste momento tenho dor crónica na omoplate direita, anca, tornozelo direito. Há dias melhores e piores mas muitos sao piores. Tenho tambem dificuldade em descansar, acordo sempre cansada. Asma, alergias, pé chato (ao pousar no chao).

    Apos ler varios artigos e depois de um medico falar de hiperlaxidao, percebi o que tenho. Mas gostava de ser seguida, fazer mais exames e tentar melhorar.

    Ja agora qual o facebook.
    Este relato esta espetacular!

    Obriada

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