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Sou uma em 5000

Em Janeiro de 2017, recebi uma carta. Abri-a expectante e finalmente, finalmente, tinha nas minhas mãos a prova. Recebi a carta da geneticista, recebi um relatório genético. Com ele poderia, finalmente, mostrar aos médicos que não era mentirosa, que não estava a inventar as dores, que tinha algo, que tinha um síndrome.

Para quem, como eu, é (ou era) um nabo em termos de medicina, um síndrome é uma colecção de sintomas que caracterizam uma doença.

Os meus sintomas foram aparecendo ao longo dos anos, mas nada de muito grave ou nada que se pudesse associar. Era mais desajeitada do que o normal, costumava bater em portas e tropeçar em nada e tinha problemas nos pés. Surgiram quando tinha dez anos e pioraram aos meus quinze anos. Após uma queda ao jogar basquetebol, surgiram um rol de problemas no ligamento perónio-astragalino, que me levaram a ser operada duas vezes (Artrooscopia, em Abril 2011, e Ligamentoplastia, em Novembro 2011).

Nestes primeiros anos de problemas, surgiram também vários profissionais que me levaram a não ter respeito por certos médicos ortopedistas. Desde sugerirem que haveria funcionários da escola que me poderiam levar ao colo entre as aulas, até afirmar que eu iria ter dores até ao resto da minha vida e que não havia nada a fazer (tinha dezasseis anos). Um dos médicos chegou a afirmar à minha mãe que era “impossível rasgar um tendão”, que “era um num milhão” e a chamar-nos mentirosas.

Além dos problemas dos pés, tinha astigmatismo, asma, alergias, sinusite, enxaquecas recorrentes, miopia e escoliose. Tinha também episódios recorrentes ligeiros de problemas gastrointestinais, pés planos e desvio do septo nasal.

Aos quinze anos tinha feito mais ecografias, ressonâncias, TACS e Raio-X que os meus colegas todos juntos. Culpava-me pela minha falta de coordenação, pela minha falta de jeito e pelas despesas que os meus pais tinham graças à minha saúde.

Os anos passam e, aos dezanove anos, comecei a ter dores no pulso, a meio de uma frequência na faculdade. As semanas passaram e, apesar de os exames nada demonstrarem, as dores nunca passaram. Foi graças a estas dores, graças ao facto de estar em Lisboa a viver, que tudo aconteceu. A minha fisioterapeuta, Rita, adorava “mistérios médicos”, interessava-se pelos pacientes. Falei-lhe de todos os meus problemas de saúde e ela decidiu investigar. Uma semana depois, surge com um nome: Síndrome de Ehlers Danlos.

Síndrome de Ehlers-Danlos

SED é um síndrome genético hereditário do tecido conjuntivo. Apesar de ter uma longa história, foi Edwards Ehlers e Henrique Alexandre Danlos quem “ligou” os pontos e trouxe os casos para a luz da sociedade. É um síndrome que afecta a formação do colagénio, produzindo colagénio defeituoso. Este está presente em todo o nosso corpo, na pele, ossos, músculos, tendões, vasos sanguíneos e até órgãos.

Há actualmente 13 subtipos, dos quais o Hipermobilidade é o mais comum. A dominância genética pode variar: enquanto em alguns tipos apenas é necessário que a pessoa tenha um gene afectado num par (ex: Rr), na maioria dos casos é necessário ter dois genes afectados num par (ex: RR)

Segundo as estatísticas, a probabilidade de alguém ter algum tipo de Ehlers Danlos é 1/5000. O tipo Hipermobilidade (1 em cada 5000 a 20000 pessoas) e o tipo clássico (1 em cada 200000 a 40000 pessoas) são os mais frequentes. Foram descobertas mutações em 19 genes que podem provocar o Síndrome, mas o tipo Hipermobilidade não tem ainda gene associado.

Estes números estarão, muito provavelmente, errados. A maioria dos especialistas diz que SED é mais comum do que os dados indicam, pela simples razão da diversidade dos sintomas e da dificuldade de diagnóstico. A maioria dos médicos não conhece: apenas ouviram falar brevemente, durante a faculdade. É frequente os doentes serem diagnosticados com fibromialgia, síndrome de fadiga crónica ou lúpus.

O doutor Rodney Grahame realizou recentemente um estudo no Reino Unido onde afirma que 95% dos pacientes continuam sem diagnóstico ou mal diagnosticados. Dos diagnosticados, 79% só receberam o seu diagnóstico 20 anos depois do início dos seus sintomas. Eu fui uma das “sortudas” – recebi o meu diagnóstico.

Teoria da colher

Esta teoria está associada a todas as doenças crónicas, é uma teoria usada por doentes crónicos para poder explicar o que é viver com uma doença ou deficiência. Criada por Christine Miserandino, ela desenvolveu esta teoria para poder explicar à sua amiga o que era viver com Lúpus. Queria explicar o que era, de facto, viver com uma doença crónica, saber que não há cura, que nunca melhoraria verdadeiramente.

Ela criou, então, a teoria da colher. Ela pegou em várias colheres e explicou que a cada dia ela acordava com um número limitado de colheres. Todos os dias ela tinha de fazer escolhas conscientes do que poderia fazer naquele dia. A maioria das pessoas começa o dia com um número ilimitado de possibilidades e de energia, especialmente pessoas jovens.

Pediu à amiga para relatar as suas tarefas do dia-a-dia. Retirava uma colher pelas tarefas que parecem simples a alguém com uma saúde dita normal: tomar banho era uma colher, levantar-se da cama era outra.

O objectivo deste jogo era explicar que a maioria dos doentes crónicos começam o dia com um número limitado de colheres e têm que gerir o seu dia consoante. Às vezes, isso implica não tomar banho para poder apanhar o autocarro para o trabalho. Outras vezes implica encomendar comida, porque já gastou as colheres todas para esse dia. Se exagerarmos num determinado dia, podemos perder colheres para os próximos dias ou ter mesmo que ficar o dia inteiro em casa a recuperar as colheres.

Uma das grandes dificuldades nos doentes crónicos é entender que não somos egoístas por ficar o dia em casa. Entender que estamos, na realidade, a poupar colheres para os próximos dias.

Porquê a zebra?

O animal associado ao SED é a zebra. Tendo em conta a diversidade de sintomas e de variações, seria de pensar que, tal como as zebras que têm padrões únicos de listras, também os portadores do Síndrome têm muitas variações, e por isso nos anto-intitulamos zebras.

Na realidade e, inicialmente, o uso da zebra está associado ao ditado “quando ouves cascos, pensa em cavalos, não zebras”. Este ditado é ensinado a jovens estudantes de medicina, pelo menos nos Estados Unidos da América. Por outras palavras, é-lhes ensinado a procurar pelas coisas comuns e óbvias, não procurar os diagnósticos diferentes e surpreendentes. É uma boa distinção, é algo comum. Os médicos devem procurar uma causa comum para os nossos sintomas. Não devem assumir que temos algum tumor raro e de que nunca se ouviu falar, mas, sim, pensar em doenças comuns como gripes, alergias, gastrites e afins.

O grande problema, a nossa maior luta enquanto portadores de uma síndrome rara, é o diagnóstico. O problema deste ditado é o facto de muitos médicos ignorarem a existência da “zebra”. É pensarem que só existem cavalos e, mesmo com anos e anos de dores e problemas, nunca ligarem os pontos.

A zebra tornou-se o nosso símbolo. Quando se ouve cascos, pensem que também existem zebras. O facto de, como dito anteriormente, todas as zebras terem um padrão de riscas diferentes, é um bónus. Todas as pessoas com o síndrome de Ehlers-Danlos, até as que têm o mesmo tipo, têm sintomas que variam, têm experiências diferentes com os mesmos sintomas.

Tatuagem feita em 2016, representando uma zebra guerreira

Relatório Médico

Assim que me foi dito um nome, pesquisei. Pesquisei, pesquisei imenso. Procurei tudo o que conseguia. Juntei-me a vários grupos no Facebook, contactei associações de doenças raras. Consegui uma consulta com um reumatologista. Uma vez que já tinha sido “queimada”, que já tinham ignorado os meus sintomas por ser jovem, disse ao reumatologista que tinha a doença. Ele concordou. E assim, começou finalmente a recta final para obter o meu diagnóstico.

Após algumas idas ao médico, fui reencaminhada para a geneticista. Até essa consulta, posso dizer que continuava a duvidar ter SED. Tudo fazia sentido: a falta de propriepção, os problemas ligamentares, as dores recorrentes, todos os meus problemas. Porém, mesmo assim, duvidava. Não poderia ser verdade. Tinha sido eu a diagnosticar-me. Sim, os médicos tinham concordado, mas tinha sido eu a sugerir!

Nas primeiras consultas, tive sempre cuidado para usar mangas compridas. Para evitar mencionar a minha depressão ou que tomava comprimidos para dormir. Já anteriormente tinha ido a um ortopedista famoso em Leiria que, ao ver as minhas marcas antigas de auto-mutilação e saber que tinha uma depressão, dirigiu-se à minha mãe (ignorando a paciente de 20 anos à sua frente) e diz que eu estava a inventar, que eu estava a exagerar as dores e que era tudo uma chamada de atenção.

Finalmente, em 2016, fui à geneticista. Ela confirmou, sem qualquer sombra de dúvidas, que tinha o síndrome, tipo hipermobilidade. Meses depois envia-me uma carta com o relatório clínico:

 “A Maria João tem história de lesões tendinosas/ligamentares e dores articulares recorrentes, escoliose com dismetria dos membros inferiores, desvio do septo nasal, pés planos e enxaquecas. Apresenta também miopia e astigmatismo.

À observação apresenta braquicefalia, hiperlaxidez articular ligeira, pele sem alterações.

(….)

O EDS hipermóvel é uma doença genética do tecido conjuntivo, que é considerado o tipo menos grave do EDS, embora complicações significativas, principalmente músculo-esqueléticas, possam ocorrer. A gravidade varia muito, mesmo entre pacientes da mesma família.

(…)

A instabilidade e mobilidade acentuada, ligamentar e articular, é frequente. Subluxações e luxações são comuns, podendo correr espontaneamente ou com traumatismo mínimo.

(…)

A dor crónica, distinta daquela associada com luxações agudas, é uma complicação grave da doença. É variável em idade de início, número, duração, qualidade, intensidade e resposta à terapia. A gravidade é normalmente maior do que o esperado com base em exames físicos e radiológicos. A fadiga crónica, as doenças gastrointestinais funcionais (…), a enxaqueca e os distúrbios do sono são frequentemente associados ao EDS.

(…)

Do ponto de vista da hereditariedade, o EDS tipo hipermóvel tem uma transmissão autossómica dominante. A etiologia genética é desconhecida na grande maioria dos casos. (…)

O risco de transmissão desta doença na descendência da Maria João é de 50% em cada gestação.”

Ter este relatório, ler este relatório, foi como se um grande peso me saísse dos ombros. Tinha MESMO um nome. Eu tinha isto! Era verdade.

Sabia que era para toda a vida. Toda a minha pesquisa me tinha indicado isso. Sabia que iria piorar. Em dois anos, tinha desenvolvido dores crónicas no pulso, no joelho e no ombro. Sempre que tentava compensar, usando mais o outro lado do corpo, desenvolvia dores nesse lado.

Este relatório significava que nunca mais me iriam olhar de lado, que nunca mais me iriam chamar de mentirosa. Que quando fosse operada, teria um papel a explicar que deveriam ter cuidado com a anestesia, que isso me poderia provocar deslocações ou mais problemas articulares.

Tenho, no entanto, que lutar pela minha saúde e tenho que estar sempre mais informada que o médico à minha frente, em especial se nunca tiver ouvido falar do Síndrome. Já o expliquei a mais médicos do que eles a mim. Já levei mais livros e artigos científicos aos médicos do que o contrário.

Neste momento, tenho um livro em casa sobre exercícios que devo fazer para fortalecer os músculos e tendões. Levei-o para a fisioterapia e para o ginásio e lá fazia exercícios recomendados para mim. Não posso pensar que sou como todas as pessoas e que qualquer exercício é bom. Não posso fazer desportos de contacto, não devo correr nem andar aos saltos. Devo fazer natação, devo fazer exercício, MAS tendo em conta que, assim que tiver dores, tenho que parar.

Faço parte também de um grupo no Facebook de SED em Portugal. Criei-o para pudesse haver interacção entre pessoas em Portugal com o síndrome. Para podermos discutir bons médicos e coisas que têm resultado para nós. Sei que cada um de nós é diferente, mesmo tendo o mesmo problema genético, mas a união faz a força e, pouco a pouco, vamos conseguindo informar mais pessoas e médicos do síndrome. Vamos tentando ser reconhecidas, vamos tentando que o síndrome seja reconhecido pelo que é: uma “doença” rara que poderá ser mais comum do que acreditamos, uma “doença” rara invisível e debilitante.

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Comments 1
  1. Boa tarde
    Ainda tens pagina sobre a SED no Facebook? Também tenho e gostava muito de ver a página ,estou tendo alguma dificuldade em chegar ao diagnóstico, muitos médicos que já fui nem sabem do que se trata.

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