Ainda que pouco traga de novo aos que se interessam pelo holocausto e pelo drama vivido pelos judeus perseguidos, famílias rasgadas de um momento para o outro e atrocidades inimagináveis, desde as nossas vidas confortáveis no aqui e agora, nunca é demais tomar um banho de realidade e recordar que o inferno desceu mesmo à terra. Melhor: o inferno continua a habitar hoje muitos lugares na terra.
Há muito que queria ver Os Últimos Dias, documentário vencedor do Óscar em 1998, a primeira cerimónia que vi completa em directo. Com o dedo de Spielberg, o filme acompanha cinco sobreviventes húngaros, que relatam as suas experiências, tragicamente semelhantes às de tantos milhões de judeus sob o jugo nazi.
A particularidade destas histórias, além, obviamente, do drama pessoal (nunca podemos afirmar que o sofrimento de cada uma daquelas famílias não é algo especial), reside no facto de que a deportação de judeus da Hungria aconteceu no final do conflito, quando a guerra estava já perdida para a Alemanha, preferindo esta continuar a limpeza étnica ao invés de canalizar os esforços para a defesa do país.
É impossível não sermos tocados pelos dramas relatados neste filme, e se o esquecimento ameaça continuamente varrer para trás da escuridão o que vamos lendo ou vendo aqui e ali, lá nos encontramos amiúde com um documento que nos recorda que aconteceu mesmo, que foi verdade, e que o facto de vermos repetido um episódio que já lemos, reforça a verdade residente no inacreditável: bebés judeus rasgados ao meio pelas pernas na Ucrânia/Hungria, ou os detalhes escabrosos que Vassili Grossman nos ofereceu do que se passou em Treblinka, são corroborados pelas imagens de arquivo presentes em Os Últimos Dias ou pelos relatos trazidos pelas crianças de outrora.
Em 1998 ainda existiam sobreviventes do holocausto com capacidade para recordar e discorrer sobre o que haviam passado. A importância deste filme também é essa: um poderoso documento histórico e humano, trazido na primeira pessoa. É por isso de um valor incalculável, talvez como Shoah, o ambicioso trabalho documental de 1985 de Claude Lanzmann de nove horas e meia assente em entrevistas a sobreviventes judeus (para que a memória perdure), filme que (ainda) não vi, mas que impacientemente aguarda no reduto da minha expectativa.
Foi numa noite solitária de um sábado em que a Sofia foi ao Festival Alive que resolvi finalmente cruzar a minha curiosidade com este filme. Em boa hora voltei a recordar o que a actualidade do médio oriente teima em fazer esquecer, tal a inversão do mundo de hoje, em tantos sentidos que não cabem no âmbito deste desabafo.
O poder do cinema, da palavra, da imagem, do som, da voz está plasmado neste filme: ouvir tremer a voz ou ver lágrimas caírem quando logo de seguida nos golpeiam as imagens de arquivo de corpos lançados para valas ou esqueletos andantes, como nem os filmes mais realistas se atrevem a reproduzir, faz prova, de um jeito que nos incomoda, mas que não é menos necessário por isso, do valor incalculável que a sétima arte pode alcançar.
[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]