“O Sonho dum homem ridículo”

Até onde conseguimos chegar? Quais os nossos limites para alcançar o ponto de viragem, ou de tomada de consciência?

Não serei a única, certamente, a ter uma pilha de livros na mesinha de cabeceira a aguardar a sua vez de serem lidos. Alguns chegam a estar ali anos a fio, porque outros vão tomando o seu lugar ou por falta de tempo ou oportunidade ou ainda por desinteresse após o início da leitura.

O caso deste, O Sonho de um Homem Ridículo do notável escritor russo Fiódor Dostoiévski (Moscovo, 1821 – S. Petersburgo, 1881), foi diferente. Tratando-se de um livro pequeno e esguio, acabou por se perder no meio de outras literaturas, vindo a dar por ele num dia de limpeza e numa tentativa, completamente infrutífera, diga-se, de reduzir a quantidade de livros, que acaba por dar ao meu quarto o aspecto de um alfarrabista.

Se dos perfumes se diz que a melhor essência está nos frascos mais pequenos, posso afirmar que no que toca a este livro, a sua pequenez em nada traduz a grandeza do seu conteúdo.

Apesar de se tratar de um livro de finais do século XIX (1877), a temática abordada não podia ser mais actual: dúvidas existenciais, depressão, solidão, suicídio, tudo questões que hoje em dia, embora em contextos diferentes (ou não…) são inúmeras vezes discutidas.

O desenrolar da estória é feito de forma a prender o leitor, quer pelas descrições utilizadas quer pelo vocabulário cuidado e escolhido a preceito.

A dada altura da trama, durante o sonho, quando o autor nos dá conta de um ser que o veio buscar, fui, imediatamente, remetida para “Um conto de Natal” do não menos famoso Charles Dickens (Christmas Carol -1843). Há aqui uma semelhança que não passa, de todo, despercebida. Não sabemos se foi ou não intencional, mas o que é certo é que, quer num caso quer no outro, os seres levam as personagens para outras realidades ou dimensões, como lhes queiramos chamar, obrigando-as, assim, a uma tomada de consciência.

As dicotomias entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, o perfeito e o imperfeito, que são nada mais nada menos do que as suas lutas interiores, foram descritas com uma lucidez e uma precisão tal, que prontamente o leitor se sente incitado a reflectir, de igual modo, sobre essas matérias.

E nesse mundo, utopicamente perfeito que fora mostrado ao autor, pareciam estar todas as respostas, todas as soluções para todos os males… Males que se arrastaram e perduraram no tempo até aos dias de hoje.

Durante a leitura, não pude deixar de fazer um outro paralelismo, desta feita com Platão (filósofo grego / 427-347 a.C.) e a sua “Alegoria da Caverna”, com os seus contrastes entre o mundo sensível e o mundo inteligível, a intemporal e infindável guerra entre os sentidos e a razão.

Talvez o que nos falte seja precisamente o equilíbrio entre ambos, equilíbrio esse que vai sendo perdido e esquecido no caos das rotinas e afazeres. E os sustos que apanhamos, e os percalços e imprevistos que vamos enfrentando ao longo da nossa vida, talvez sejam o caminho para as tais tomadas de consciência que nos irão ajudar a agir/reagir quer em conformidade com os nossos sentimentos quer de acordo com o que está correcto.

Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do antigo acordo ortográfico.
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