Os sapatos gastos eram uma metáfora para a sua vida, gasta, triste, desaproveitada. Sabia ter o conhecimento para enriquecer a vida dos jovens, para os preparar para os desafios do futuro. Mas esse nível de conhecimento era muito maior que a ambição que suportava nos ombros. Não é que não sonhasse sentar-se na mais alta cadeira da humanidade, no entanto sentia ter perdido as oportunidades para lá chegar.
Era assim o professor, pessoa de inteligência acima da média mas oculta no interior da sua pessoa. Era alvo de risos escondidos no recreio quando passeava a sua postura incorrecta suspensa no seu velho e fiel casaco castanho, nas suas calças de bombazine, nos seus sapatos de solas gastas.
Ele ouvia os insultos e sentia-lhes o peso nos ombros. A cada palavra maliciosa tinha uma resposta perspicaz que ficava presa no introvertido circo da sua imaginação. Com o tempo aprendera a não reagir e assim conseguia calar os mais audazes e cruéis, assim apenas com a força da sua indiferença, algo que com o passar dos mesmos anos se tornou natural.
Na sala de aula era apenas mais um professor aos olhos dos seus alunos. Iniciava as aulas com um tímido bom dia e sua voz apenas se elevava acima dos murmúrios quando começava a despejar as matérias. No plural porque ele facilmente se perdia em outras considerações e em temas alternativos. Por vezes para puxar para si a atenção dos alunos com temas mais interessantes e respeitantes à idade da sua plateia. Noutras vezes apenas porque lhe apetecia exercitar o cérebro e assim verbalizava por momentos uma pequena parte do seu conhecimento, evitando que dela se esquecesse como um livro empoeirado na mais alta estante de uma biblioteca.
O facto é que estas divagações emprestavam-lhe uma posição única entre os professores da escola. Era alvo de gozo pela sua imagem estereotipada de professor, mas nenhum aluno o odiava e todos o respeitavam. Viam nele uma pessoa simples de fácil acesso que além da facilidade com que expunha o que lhe competia expor, ainda alimentava a curiosidade de muitos com as suas palestras distantes.
No final da última aula de cada semana, escrevia para todos uma pergunta sem resposta certa ou errada. Eram questões que obrigavam os seus alunos a reflectirem, a pensarem por si mesmos. “Como deverá evoluir o homem enquanto espécie animal?”; “Que precisamos fazer para restituir o equilíbrio ambiental?”, “Qual é a importância da exploração espacial?”, eram algumas das sua perguntas. Não se importava com as respostas ocas nem com as que nem nasciam, mas adorava ler as que lhe chegavam aos olhos. Discutia-as com os alunos na primeira aula de cada semana e ficava assim a conhecer a visão que alguns tinham do futuro e de certa forma dava-lhe algum conforto saber que havia quem pensasse o mundo.
Esse conforto era-lhe essencial. Era um alimento. Era um contraste para com o final do dia de aulas. No final de tarde já noite caída, depois da saída de todos os alunos, arrumava as suas folhas e livros na sua pasta de pele gasta, apagava a pergunta do velho quadro de ardósia e antes de desligar a luz e sair da sala, olhava o negro do quadro e nele via a sua alma, negra pela ausência de cor, pela ausência de vida para lá da sala de aulas.