O Deus das Moscas

William Golding escreveu O Deus das Moscas em 1953, no rescaldo da Guerra. Com as atrocidades, difíceis de acreditar à medida que os campos de concentração iam sendo descobertos e os testemunhos recolhidos, admito que tivesse como intenção retratar o estado selvagem que o ser humano poderia atingir na ausência de qualquer forma de regulação das relações entre os pares ou respeito pelas liberdades.

Um avião cai numa ilha deserta e os únicos sobreviventes são crianças. Depressa o espectro da liberdade as inebria e os primeiros tempos são de idílio. À medida que as obrigações se impõem em prol da sobrevivência e a organização chama por eles, vão caindo as convenções e um estado primitivo, embrutecido, começa a emergir. Formam-se grupos que depressa convergem para tribos e a vida estala num deboche anárquico onde a única lei que prevalece é a do mais forte. O bom senso desliza para o ponto de fuga como o pôr-do-sol ao longe, sobre o mar.

A ilha onde Golding barrica o grupo, independentemente da sua origem, causa, crença ou intenção, sob o inicial cenário paradisíaco, revela-se inóspita, misteriosa e agressiva, como a mente humana fechada sobre si mesma. Ela oferece o terreno onde o retrocesso civilizacional cavalga na impossibilidade de se ser no submundo do isolamento. É a ilha das crianças d’O Deus das Moscas.

Numa regressão da teoria de Rosseau, onde o Homem, naturalmente bom, é corrompido pelo meio, Golding subverte a ordem dos factores apresentando o Homem naturalmente selvagem, sendo o meio o garante de uma convivência normal e possível, assente em valores, respeito e liberdade. Quando o grupo volta as costas à sociedade, o instinto mais primário emerge. O resto é o habitual nestas seitas, tal qual acontece no livro: o inimigo externo, dividir para reinar, a luta pelo poder…

Se no Iluminismo a premissa de Rosseau parecia incontestável, a actualidade mostra-nos como as verdades são quase só circunstâncias: duzentos e cinquenta anos depois, mantém-se a questão: serão os seres humanos naturalmente bons ou maus, sendo o meio o contraponto a um estado inato da humanidade? É até questionável se existe um estado “bom” ou “mau” aplicável a todos. Um aspecto parece navegar de feição: o fecho de grupos sobre si próprios mata a diversidade e o debate e tolhe o questionamento, tão importante para a descoberta, a busca do desconhecido e a evolução.

William Golding viria a receber o Nobel da Literatura em 1983. O Deus das Moscas (o único livro que conheço dele) muito para tal terá contribuído. O livro permanece em mim como uma chamada de atenção desagradável e assustadora para o destino onde nos conduzirá uma sociedade sem freio, em que qualquer incompreendido, revoltado ou descontente pode derivar para uma ilha deserta à margem das regras comuns e, chamando a isso liberdade, recuar séculos rumo à boçalidade.

O final do livro é um choque. Não poderia ser de outra forma, tal a intensidade da vida dentro da tribo. Mas são apenas crianças.

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