A Torre do Inferno

Consta que Pina Manique gostava dos ares de Coina e que adquiriu uma certa propriedade que ofertou a um familiar seu. Os rumores diziam que aquela zona estava envolta numa história obscura e cheia de mágoas. Os populares garantiam que eram só lendas e mitos, mas as pequenas historietas foram crescendo até chegarem aos ouvidos de muitos.

O tempo foi passando e no final do século XIX a propriedade, que estava ao completo abandono, foi comprada por Manuel Martins Gomes Júnior. Filho de gente humilde, muito cedo decidiu que havia de ser rico e deixar a miséria para sempre. Trabalhou em Lisboa, numa mercearia, e voltou à sua terra para comprar um moinho.

Contam as más línguas que a astúcia o ajudou e se lembrou de pegar fogo à sua aquisição para receber o dinheiro do seguro. Nunca se confirmaram as suspeitas. Com o dinheirinho na mão, que ele só acreditava no que via, comprou um pedaço de terra junto a outras já ocupadas. Um mãos largas de início, mostrou ser bem rígido nas cobranças de empréstimos. Não recebendo o devido no tempo antes acordado, anexou as propriedades ficando com um quinhão considerável.

Rapidamente aquele espaço se tornou num negócio rentável, com criação de porcos que lhe forneceram uma enorme maquia. Por esta altura já se tinha iniciado numa outra actividade, o lixo que era somente orgânico. Comprou barcos com nomes sugestivos: Mafarrico, Lúcifer, Belzebu, Demónio e Satanás, que usou para o transporte desses resíduos para Coina. O nome da Quinta era a condizer: Inferno. Tudo perfeito e no seu lugar.

O segredo estava aqui: este lixo servia para alimentar os porcos a custo zero! Com os lucros acumulados prestou um enorme serviço social; ajudou as famílias necessitadas da região e construiu a primeira escola primária da freguesia. Paralelamente a estes feitos ainda fundou a Companhia Agrícola Nacional. Um benemérito de enorme valor.

A sua fama estava iniciada. Transformou-se numa personalidade importante, um republicano convicto que se soube cultivar. Entre os seus variados desejos um deles ganhou primazia: a construção de um palácio. Depois da obra realizada nunca se entendeu a sua finalidade, uma vez que nunca foi morada de ninguém O homem tinha vendido a alma ao diabo e nada humano ali iria vingar, dizia-se.

A sua forma labiríntica suscitou inúmeras especulações tendo-se ouvido falar de Maçonaria sem, contudo, haver certezas. Mais uma vez os tais mistérios que se perpetuavam. Com a morte do seu proprietário, em circunstâncias pouco claras, a herança chegou às mãos do seu genro que tratou de a vender. O estigma de demoníaca assustava qualquer um e não queria, de maneira nenhuma, ter essa responsabilidade nas suas mãos.

O novo proprietário retomou a ideia inicial da quinta, cuidou dos jardins e acrescentou-lhe outras benfeitorias. De Quinta do Inferno, um nome carregado de más memórias e situações, passa a Quinta de S. Vicente, mas a carga que levava consigo nunca se dissipou. Os novos planos desaparecem rapidamente e um novo dono toma posse do terreno. Parecia que a tomada desta terra estava enfeitiçada e não tendia a desaparecer.

Este pretendia transformar a quinta num outro tipo de local, uma pousada. Com ideias de renovação, o que pretendia era dinamizar a zona e o seu investimento. A margem sul estava a crescer e uma mão firme de inovação seria a solução. Um projecto sustentável avançava no papel. Gentes que viviam na cidade grande poderiam usufruir daquela tranquilidade e paisagem.

Os sonhos muitas vezes não passam disso mesmo, sonhos. Um incêndio, de contornos pouco esclarecidos, atacou o edifício e toda a propriedade. Mas o estranho é que a torre se mantinha inalterável. A sua recuperação seria particularmente dispendiosa e o seu dono não estava em condições económicas de a efectuar. A sina ou azar da quinta mantinha-se. Novamente o fogo e desta vez sem resultados que fossem apetecíveis.

Com o passar do tempo, as aranhas teceram as suas teias e capturaram as suas vítimas. A torre continuava imponente a olhar para quem passava nas suas redondezas. Os mais velhos tinham medo do local e as mulheres benziam-se sempre que tinham que se aproximar dele. Os homens, cheios de incerteza, comentavam que ouviam isto e aquilo. Nada fundamentado. Elas nem se atreviam a pronunciar o nome.

Após tantos anos, o nome original não se dissolveu nas memórias colectivas e é pronunciado com receio pelos mais antigos, ainda imbuídos de um espírito bem religioso e convencional. Os mais novos brincam com a situação, mas o certo é que não se afoitam a ultrapassar as barreiras, invisíveis, para conseguir chegar à torre maldita que continua a dominar a paisagem e a amedrontar quem se atreve a olhar para ela.

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