Celeste tinha oito anos e queria ser um gato. Era uma menina pequena, e desde sempre que se lembrava de ter querido ser um gato. Não lhe interessava a veterinária, ser professora, saber ler ou contar. Ela queria ser ágil e passear por onde quisesse, instintiva, independente. Sim, queria ser um gato, estava decidido!
“Avô, posso ser um gato?” perguntou, puxando-o pelas calças.
O avô parou de fazer a barba ao cliente e olhou para ela, pensativamente. Depois, sorriu, como se chegasse a uma conclusão: “Podes ser o que tu quiseres, princesa!” Continuou a cortar a barba ao cliente.
“Ó senhor Vasco, então acha bem dizer isso à menina? Ser um gato é impossível!” disse o cliente baixinho, preocupado. “A menina vai ficar de coração partido quando souber…” avisou-o.
“Não me leve a mal, Dr. Coelho, mas só os senhores que se pensam inteligentes é que consideram que há no mundo alguma coisa impossível. Acha mesmo que é impossível para a minha neta ser o que ela quiser ser? Nada é impossível, só precisamos de tempo, paciência e trabalho.”
“E imaginação, neste caso…” troçou o cliente.
O avô não se importou. Deixou que um leve sorriso lhe aflorasse nos lábios e continuou a trabalhar. Ele sabia que o cliente não tinha razão, mas não ia convencer alguém que, claramente, não queria ser convencido.
Celeste observou a conversa, descansando nas palavras do avô, sem preocupações. Celeste não se preocupava muito com o que os outros pensavam. Ninguém desconfiava, mas o velho barbeiro era a pessoa mais inteligente do mundo, o único que sabia dos segredos da terra e dos mares, dos céus e dos infernos. Celeste confiava plenamente na segurança que o avô lhe tinha passado, independentemente do que todos chamassem de ilusões e mentiras.
Quando o cliente se foi embora, o avô chamou-a para irem para casa jantar. Deviam ser cerca das dez da noite, porque começava a anoitecer naquele dia quente de Verão. As pessoas ainda passeavam na rua, alguns jovens aproveitavam o calor e bebiam cervejas, as esplanadas estavam cheias. Quem passava apressado e quem estava distraído mal reparava naquele velhote de bigode farfalhudo que andava com alguma dificuldade e que levava pela mão, feliz, uma menina sardenta que dava saltinhos de alegria. Os dois cantarolavam a mesma música, em sinfonia, ao mesmo tempo, quase sem querer. Sem notarem, até. Todo o caminho para casa foi feito assim, o avô a arrastar as pernas pesadas da idade, e Celeste aos saltinhos. Igor, o rafeiro que vivia com o avô ia fazer 21 anos, recebeu-os em casa saltando jovialmente, como um cachorrinho.
Assim que acabaram de comer, Celeste foi a correr buscar as pantufas ao avô e levou-as à varanda, onde ele já estava a acender o primeiro cigarro. Colocou-o na boca de Igor, que já o esperava de cauda a abanar. De seguida, acendeu o seu. Celeste sentou-se no chão da sala, perto da varanda, a vê-los fumar. Era das memórias mais antigas que tinha – ver a noite chegar, segura, reconfortante, magnífica com todas as suas cores e a sua força, fosse inverno ou verão, na varanda da sua casa enquanto o avô e o cão Igor fumavam juntos o único cigarro do dia.
“Minha querida, não ligues ao mundo” dizia-lhe o avô, apreciando o cigarro de olhos fechados. De seguida, com alguma dificuldade, tirava o cigarro da boca do cão para ele poder soprar o fumo. Voltava a pôr, e tirava o seu próprio cigarro para também expelir o fumo em círculos que faziam Celeste dar risadinhas infantis.
“Eu sei, avô”, respondia ela segura.
O avô ficava tranquilo, com um leve sorriso sonhador, e contava-lhe uma história. Às vezes, contava segredos dos antigos, segredos que ela não percebia e não conseguia decorar. Outras vezes, dava-lhe mais conselhos sábios sobre ser um gato. E ainda outras, contava-lhe o passado da família, do pai dele que se tinha tornado a primeira carruagem eléctrica portuguesa, por exemplo. Ele tinha decidido ser barbeiro para já, mas a sua mulher, a avó de Celeste, um dia tinha escolhido ser uma árvore a proteger a campa do pai de Celeste, e ali continuava ela, um belo salgueiro-chorão cheio de personalidade no maior cemitério da cidade. Ele próprio sonhava ser um som, quando decidisse o que queria ser para sempre. As pessoas decidiam o que queriam ser, explicava-lhe ele, e decidiam também se viviam completamente vivas ou se morriam ainda em vida, andando como que hipnotizadas pelo mundo, devendo vários anos à terra quando o coração desistia de tantas pequenas mortes por cada oportunidade perdida. Quando tanto o cão Igor como o avô terminavam o seu cigarrinho, iam todos lavar os dentes e dormir. Celeste sonhava com estrelas, sempre com muitas estrelas, e era uma menina feliz.
Ainda agora, pensava enquanto lambia uma pata amarela peluda e a passava pelos bigodes; ainda agora, no colo da sua carinhosa dona, enquanto ronronava de prazer com as festinhas que recebia na barriga, Celeste sonhava com o avô, com a sua infância de menina sardenta, e com muitas, sempre muitas estrelas.