Carta escrita da “prisão” de Lisboa

Disclaimer: esta carta é inspirada em Martin Luther King Jr. e na sua “Letter from a Birmingham Jail”. O texto original encontra-se neste link que vou referir e não facilito a sua tradução, já que todas as que consultei tiraram o carisma do autor e logo a sua mensagem original.

8 de Outubro de 2019

Caríssimos e caríssimas colegas: pessoas que habitam a Terra, mais especificamente as terras Portuguesas

Enquanto estou confinada na prisão a que a vossa cabeça me rebateu, deparei-me com várias mensagens recentes de várias pessoas, que classificam as minhas atividades e a minha escrita como “obscenas ou reacionárias”. Geralmente não ligo ao que me dizem sobre as minhas ações e a minha escrita. Sei os meus limites e sou uma pessoa de bem e de respeito e, por isso, respeito a liberdade individual de cada pessoa que comigo lida de forma direta ou indireta e sei perfeitamente o que é liberdade de expressão e os limites e limiares dessa liberdade na lei (nas leis).

Se eu respondesse a todas as críticas e pensamentos que chegam até mim sobre o que escrevo, sobre como escrevo, sobre o que digo e sobre as palavras que uso, não haveria tempo na cidade de Lisboa (juntando todos os habitantes) para dar respostas seguras a todas as mensagens de pessoas inseguras.

Sinto, no entanto, que vocês, pessoas que habitam a terra, na qual eu me incluo, mais especificamente as terras Portuguesas, são homens e mulheres de genuína vontade e de boa vontade também (e salva-nos a nossa vontade, quando tudo o resto falha) e sinto que as vossas críticas são sinceras e, por isso, vou tentar responder e esclarecer às considerações que fazem sobre a minha obscenidade individual e às minhas mensagens ousadas e reacionárias/revolucionárias. É, no entanto, necessário que me leiam integralmente e não na diagonal para ser claramente compreendida.

Sinto que devo indicar por que estou aqui, nesta prisão de Lisboa, sendo uma E.T. do Porto (mais propriamente de Lousada). Tenho a honra de servir como presidente da direção a uma ONGD – Organização Não Governamental para o Desenvolvimento que atua na área da dignidade individual, do respeito e dos direitos humanos. Por servir, por gostar de servir, tenho observado barbaridades, que devidamente analisadas, só podem vir unicamente da incapacidade de quem as praticou em formular pensamentos verdadeiros, bons e razoáveis.

Estou em Lisboa, mas queria estar em Saturno, já que a injustiça está também aqui e está na cabeça de todas as pessoas que julgam que por terem uma competência em particular ou uma singularidade são melhores ou maiores e, por isso, podem julgar.

Julgar não é pensar. Nunca foi. Pensar serve a análise, os factos, a dignidade, a emoção e a razão. Julgar serve o ego, geralmente inflamado. Pensar bem e com consideração pelas pessoas serve a alma.

Somos todos e todas particulares e singulares.

Não sou católica, se fosse, invocaria todos os ghostwriters que escreveram a Bíblia. Todos sabemos que não foram os apóstolos, se fossem, não teriam tempo para seguir Jesus com a agenda complicada que tinha. Eram poucos apóstolos, eram 13. Assim, pagaram a vários ghostwriters para o fazer. O que é legitimo, já que na época não era legislada nem regulamentada a profissão.

Contudo, eram de pessoas de bem estes ghostwriters, e tinham bons princípios, e, no entanto, hoje seriam condenados porque venderam a sua escrita. Não se vende tudo e não se compra tudo?

Reza a bíblia que, alguns meses depois de ser batizado, Jesus foi para Jerusalém. Estavam presentes muitas pessoas na cidade para comemorar a Páscoa. Na Páscoa, as pessoas iam ao templo para oferecer sacrifícios de animais (o PAN não seria a favor e ainda bem). Algumas pessoas levavam seus próprios animais para sacrificar, mas outras só compravam os animais quando chegavam a Jerusalém.

Quando Jesus chegou ao templo, viu várias pessoas a vender ovelhas, bois e pombas. Aquelas pessoas não estavam lá para adorar o seu Pai. Estavam lá para ganhar dinheiro! Jesus pegou numas cordas, fez um chicote e expulsou animais e vendedores enquanto dizia: “tirem tudo daqui! A casa do meu Pai não é lugar para comércio e comerciantes.”

Caríssimas pessoas que habitam a terra, mais especificamente as terras Portuguesas, digam-me em que casas não fazem comércio, em que não se vendem e não são vendidos. Que não se vendem por dinheiro (por mais dinheiro ou pela falta dele e a ganância de o ganhar a qualquer custo), que não se vendem por oportunidades (sejam elas quais forem: um bom emprego (ou um mau) viagem, passeio, uma saída ou um encontro), que não se vendem por atenção, pelo desejo de serem vistos, sentidos, amados e apreciados. Sim, estão a vender a vossa dignidade por uma grama de atenção.

Ou que não são vendidos: vendidos por aquilo que não são e nunca foram, mas que apregoam ao mundo que são: que são felizes, bem casados, bem namorados, bem empregados, bem amigados ou bem relacionados. São? Já pararam para pensar nisso bem com a alma? Já se viram em alguma situação de aflição em que precisaram de atenção ou mesmo do vil metal para poderem viver? Quem esteve nesse momento? E por oposição, quem não te invejou quando viajaste para o outro lado do mundo ou mesmo para Espanha para descansar? Quem não te invejou nos teus momentos de grandeza?

Os amigos vêem-se nos momentos de aflição, mas também nos momentos de grandeza. São os que estão, os que ficam, os que estão presentes e não te ignoram. E não, não são os 500 amigos do Facebook ou do Instagram.

Estou muito consciente da minha ação na terra, quer como pessoa e como profissional e por isso não posso ficar ociosa em terra nenhuma sem me preocupar com o que acontece a pessoas que quero como família, às que disse escolher em determinado momento como parte da minha família ou que posso escolher agora. A injustiça em qualquer lugar ou com qualquer pessoa é uma ameaça à justiça em todos os lugares e a todas as pessoas. Estamos constantemente presos numa rede inescapável de mutualidade, amarrada numa única peça de roupa que tem o nome de destino. Qualquer coisa ou qualquer força, palavra ou pensamento que possa afetar uma pessoa diretamente, afeta todas as pessoas indiretamente.

Caras pessoas que habitam a terra, mais especificamente as terras Portuguesas, preocupam-se em “ajudar o outro” quando na verdade querem ajudar o vosso outro. O outro ego que de certa forma vos serve ou complementa o ego que dizem ser altruísta. Preocupam-se da boca para fora com os outros, quando na verdade se deveriam estar a preocupar com a bondade que não têm, mas dizem ter. Devem pensar com a alma sobre isto a sério.

Sou branca, tenho 41 anos, sou heterossexual, mas sou mulher. Só duas questões nesta equação me tornam imprópria para viver nesta sociedade: a idade e o género. Imprópria para poder viver a minha liberdade, porque sou mulher e por isso, a minha liberdade será sempre vista como sendo “galdéria”, facto que estou a viver, só porque decidi ser feliz e amar. Mas como sou mulher, sou galdéria. Se fosse homem, seria uma escolha ter um 3º, um 4º ou um 9º casamento ou relacionamento.

Quanto à idade, por ter 41 anos, sou muito sénior para a maior parte das posições do mercado de trabalho e demasiado júnior para posições de direção.

Estamos mais discriminatórios que nunca, mais racistas que nunca, mais xenófobos que nunca e queremos “ajudar os outros”.

Trabalhamos e ganhamos dinheiro à custa da miséria alheia: à custa de pessoas com ausência de autoestima, com baixa autoestima e exploramos isso para ganhar dinheiro. Criam-se máquinas de psicólogos (na qual me insiro sendo licenciada em psicologia também), máquinas de coaches que ajudam toda a gente (na qual me insiro, sendo certificada em coaching), que ganham o seu dinheiro por “doações que queiram dar e do valor que quiserem dar” ou a cobrar, à custa da eterna busca pela felicidade e bem-estar.

A ética fugiu para Marte e está sem ar. Na Terra, trespassou a loja à malta do: “força, vais conseguir” a qualquer custo (ou doação).

Como se processa o dano severo que uma classe profissional não regulada e regulamentada causa? Ou que uma classe profissional protegida por uma “Ordem” causa? Qual é a melhor maneira para afundarmos em processos judiciais e custas para não chegar a lado nenhum?

Como se determina se uma lei é justa ou injusta?

Tendo estudado Direito, na reputada Universidade de Coimbra, sei desde o 1º ano que direito e justiça são coisas completamente opostas.

Direito vem da normalização societária e da necessidade de regulamentação.

A justiça vem dos nossos valores pessoais. Por isso temos 7.7 biliões de justiças na terra e em terras portuguesas cerca de 10 milhões de justiças e justiceiros (mas só nas redes sociais).

Para colocar nos termos de São Tomás de Aquino (um santo tem sempre mais peso que uma mortal): uma lei injusta é uma lei humana que não está enraizada na lei eterna e na lei natural. Qualquer lei que eleva a personalidade humana é justa. Qualquer lei que degrada a personalidade humana é injusta. Todos os estatutos da segregação são injustos porque a segregação distorce a alma e prejudica a personalidade. Dá ao segregador um falso sentido de superioridade e ao segregado um falso sentido de inferioridade.

A segregação, para usar a terminologia do filósofo judeu Martin Buber, substitui num relacionamento o “eu” por um “eu” e acaba relegando as pessoas ao estatuto de coisas. Portanto, a segregação não é apenas política, ou económica e sociologicamente insalubre, a segregação é moralmente errada.

Por isso, pessoas, vocês estão moralmente erradas em todo e qualquer tipo de segregação que fazem: se é bonito ou feio; alto ou baixo; doente ou saudável; preto ou branco; novo ou velho; mulher ou outra coisa qualquer.

Uma lei injusta é um código que um grupo maioritário que em termos numéricos ou de poder obriga um grupo minoritário a obedecer, mas não se vincula a si próprio. Essa é a diferença legalizada.

Da mesma forma, uma lei justa é um código que a maioria obriga uma minoria a seguir e que está disposta a seguir a si mesma. Esta é a uniformidade legalizada.

Espero que consigam ver a distinção que estou a dar. Em nenhum sentido, durante qualquer linha ou parágrafo deste texto, advogo fugir ou desafiar a lei. Não sou uma segregacionista raivosa. Se o fizesse, faria de mim uma anarquista que não sou. Quem infringe uma lei injusta deve fazê-lo de maneira aberta, com amor e com vontade de aceitar a responsabilidade e penalização por ter violado a lei. Eu, de forma espontânea afirmo, que uma pessoa que infringe uma lei cuja consciência pessoal lhe diz ser injusta e que aceita de bom grado a pena de prisão para despertar a consciência da comunidade para essa injustiça, está, na realidade, a expressar um elevado respeito pela lei. Eu expresso todos os dias um elevado respeito pela lei, questionando e educando para o direito.

No entanto, hoje, educar para os direitos é ilegal.

Pensar hoje é ilegal e dá cadeia em muitos casos.

Sonhar hoje é ilegal, na verdade, é completamente ilegal, e no planeta terra dá cadeia sonhar com um futuro melhor e imigrar.

Só é legal, jurídico e altamente regulamentado vender a qualquer custo.

Nunca antes escrevi um texto tão longo para uma publicação. Receio que seja muito texto para investirem o vosso precioso tempo. Posso garantir que teria sido muito menor se eu estivesse a escrever de uma mesa e cadeira confortável em minha casa, não posso estar em minha casa, e o que mais se pode fazer quando estamos numa “prisão” para além de escrever textos longos e ter pensamentos longos?

Se eu escrevi nesta carta alguma ideia reacionária, que incita o ódio, peço desculpa. Se o incitei, meta-o cá fora. Se o conservar aí dentro, vai ter um problema psicossomático e só dará a ganhar a psicoterapeutas e psicólogos.

Espero que esta publicação o encontre forte na fé de mudança e no caminho para a compreensão de si próprio/a.

Espero também que as circunstâncias em breve possibilitem que eu encontre cada um de vocês, não como reacionária, revolucionária ou obscena, mas como companheira de caminho na promoção da dignidade da pessoa humana, e no dar a mão a quem precisa (a ti se precisares).

Esperemos todos que as nuvens negras do preconceito, seja ele qual for, passem rápido e a que a névoa profunda do mal-entendido seja levantada das nossas vidas encharcadas de medos.

Esperemos todos que amanhã não nos estejam muito distantes as estrelas cheias de amor e que as possamos alcançar.

Espero que todos e todas compreendam o que é a solidariedade e a fraternidade e que estes dons possam brilhar todos os dias na nossa grande nação com toda a sua beleza cintilante.

Só sou pela causa da paz e da fraternidade. Só sou paz. Só sou amor. Sempre. E para sempre.

Anabela Moreira
Lisboa, 08 de outubro de 2019

Fotografia de Bruno Miguel Santos
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