Um ensaio sobre a linguagem

Ricardo Araújo Pereira, numa entrevista recente ao Expresso, abordou o tema da arte da língua portuguesa. É uma pessoa que dá importância às palavras, onde a linguagem é o centro do seu trabalho, o núcleo duro da produção do humorista. A esse respeito, diz que “o humor, a sátira, nas suas múltiplas formas, é um modo de observar e compreender o mundo”. Para ele o riso, ou provocar o riso, é quase uma forma de redenção.

Este artista do humor e dos múltiplos léxicos, afirma que o seu grande desígnio no universo criativo passa por seleccionar imagens, retirá-las do contexto em que foram apresentadas, pôr a lupa tão perto de determinadas coisas e comentá-las dessa forma, pois, segundo ele, “o humor é um fenómeno demasiado contraditório para permitir declarações definitivas; trata-se de uma crítica, nunca é uma forma de agressão”.

Conhecido pela sua versatilidade e cético em relação ao poder que um humorista possa ter, aponta que “um dos problemas da sátira política é perceber se é destrutiva ou se homenageia”. O papel do humorista passa por conseguir manter esse filtro e essa distância poética entre a crítica e o escrutínio do objecto satirizado.

Em tom de brincadeira, mas sem ironia, esclarece: “pagam-me para pensar em coisas inúteis”. De facto, o objectivo do humorista passar por conseguir desconstruir a realidade de uma forma genial, através de metáforas nunca outrora idealizadas. Passa por olhar o mundo de cima, a partir de um distanciamento (intelectual) entre mim e mim próprio.

Também a esse respeito, Tiago Torres, escritor, poeta e letrista português, numa entrevista para a mesma entidade, alertou que “não há gerações mais talentosas que outras. Há muito boa gente a cantar, escrever, compor, tocar. Mas cada vez mais a indústria não quer casos singulares. Os managers, os produtores, as editoras mandam mais na carreira dos artistas do que os próprios. Enquanto o sucesso estiver acima da arte, não vai haver espaço para artistas de excepção”.

No seu processo criativo, tem a inspiração consigo mesmo, dentro de si. “Só sei observar com o coração; é por isso que escrevo”. Escreve para combater o desassossego de si mesmo, a sua finitude, pondo em questão os limites do universo das palavras, da linguagem, do tom, da arte. Pinta com as palavras sob a seguinte batuta: “a vontade de superar as dificuldades, de sorrir na adversidade; essa é a energia que me alimenta e desafia”.

Com efeito, neste prisma, saliente-se ainda as recentes declarações de João Onofre, um artista visual português que nos últimos 20 anos criou uma das obras mais desafiadoras do panorama artístico português e uma carreira internacional sólida. “Interessa-me encontrar uma visão de conjunto da obra, mas não no sentido retrospectivo. Isso ajuda a perceber os seus elementos essenciais, que são transversais apesar da utilização de vários media, como o papel da performance que é um espectro”.

Com o objectivo e a essência de desafiar e contrariar os limites da linguagem, desmistificou a forma como inicia o seu processo criativo, como dá asas ao seu delírio articulado. “Os trabalhos partem quase todos de um guião conceptual, chamemos-lhe assim, no qual há uma ação pré-estabelecida mas depois com o desenrolar dessa acção tornam-se imprevisíveis. Há uma espécie de indeterminação programática. Interessa-me criar possibilidades em que não sei como essa indeterminação se vai manifestar”.

A plenitude da sua obra faz uso da tradução como traição e acolhimento, um motor criativo, segundo o qual “há um pensamento da linguagem como matéria, é muito performativo. Ao mesmo tempo, vê-se a caneta a gastar-se, vemos o processo. Ponho um elemento da cultura popular que é o turbo o que cria um curto-circuito com a lógica muito descritiva. Acaba por ser um jogo em linguagem”.

A respeito de temas como o amor, a atracção, a impossibilidade, a perda, presentes nas suas obras, às vezes com ironia mas sempre sem cinismo, diz: “é verdade que há um pensamento sobre a finitude e sobre o fracasso. O amor talvez seja mais circunstancial”. Desafiando o inexplicável, o artista explica qual é o seu desígnio ao promover a sua criatividade. “Interessa-me fazer as coisas um bocado fora de lógica, quebrar as fronteiras entre o visível e o que permanece resguardado”.

No esplendor de uma linguagem rica em metáforas e eufemismos, os artistas afiguram-se como os promotores de uma intelectualidade que desafia todas as pré-concepções, através de um descomprometimento poético pela essência da humanidade e pela beleza e apanágio sublime das palavras.

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