O Ladrão era um cão errante que calcorreava Almada, de uma ponta à outra, indo até ao Ginjal ver como ia a pesca, com uma enorme descontração. Um cão emblemático, um símbolo de resistência e de resiliência. Percorria Seca e Meca, ou outras zonas que lhe davam na gana, muito senhor do seu nariz. Altivo e determinado, o Ladrão era o cão menino da cidade.
Não havia quem não o conhecesse. Tornou-se um ícone da terra e ele sabia ouvir e escutar com atenção. Era inteligente e esperto e foi assim que se safou. Não sei quantos anos andou na rua, bastantes e longos, mas recordo-me dele há muito, nos seus passeios deambulantes, qual Cesário Verde canino.
Para umas pessoas, as que ele gostava, que isto dos afectos também tem lugar no coração doa cães, sobretudo os de ninguém que passam a ser de todos, era uma alegria e as festas eram obrigatórias. Para as outras, as que lhe encontravam todos os males do mundo, mas vão ao cinema ver filmes com cães e choram baba e ranho, como era um vadio perigoso, não lhes ligava.
Passou a ser lendário e ouviam-se relatos do que fazia. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve, era pura especulação da vida do patudo que não gostava de casa nem de apertos. Ia-se safando como podia, que a vida é madrasta para eles, os vadiolas, é preciso ter sorte para se ser cão, o que ele fazia com toda a mestria.
O tempo passou e a idade já lhe pesava bastante. Tempos passados ao frio e à chuva deixam marcas potentes. Um dia uma alma bem caridosa deu-lhe um lar, quando ele, finalmente, se decidiu a aceitar. A velhice é uma espécie de lesma esmagada com coroa de espinhos e começava a doer muito.
Já tinha dificuldade em andar, mas com o auxílio de muitos encontrou-se uma solução para o retirar de casa. Um dia chegou a sua cadeirinha para os quartos traseiros, as rodas de andar e assim voltava a dar as suas voltas. Que alegria ver este rapaz!
Era uma figura pública de Almada. Recebeu uma medalha da autarquia, nos 50 anos da mesma. É justo. Tanto tempo a resistir naquela cidade tem direito a ser reconhecido como ser que fez por a divulgar. Sem protestos nem nada que pudesse perturbar a vida corrente, o Ladrão passou aos anais da História Local.
A última vez que o vi foi no Faraó e, mesmo velhote e a ver mal, reconheceu-me. Eles sabem quem os gosta. Veio ter comigo, trôpego no seu bólide, com a alegria que costumava ter, a rir e a querer fazer as mesmas tropelias de novo.
A vida não é eterna. Partiu no dia 4 de Outubro. Já não precisa das suas rodas. Agora tem asas e pode voltar a ir ao Ginjal ou onde bem entender. Passou à eternidade. O patamar mais elevado que se possa atingir.
Vai deixar saudades. Muitas. O tempo irá sarar esta ferida colectiva. Agradeço a quem o cuidou tão bem. O Ladrão nunca será esquecido e os mais novos vão ouvir contar as suas aventuras mirabolantes e fantásticas.
A verdade é que ele escolheu o dia do animal para abrir as suas recentes asas e voar até onde nunca mais o iremos ver. Fica no coração. Ladrão de emoções e de memórias que se vão propagar.