No silêncio não sei sorrir

As horas, os dias, as noites, o caminho todo a pensar, a repensar, a tornar, a revirar o repensar do avesso e… sinto-me como se estivesse numa daquelas mesas num café de Santiago de Compostela com as cadeiras de madeira preta maciça e as mesas pretas de mármore vestidas dum frio silêncio inquietante de perguntas, das perguntas, tantas, feitas à vida, por tantos, por todos de nós.

Sinto os arcos em rectas e curvas no meu corpo num relance pungente, quase me cortam e depois entrecruzam-se ferindo-me o próprio cerne da dor. É a idade, talvez, digo-me.

Porque, enfim, a idade deu-me algumas luzes, sobre esse mistério da vida, penso saber que nenhum de nós – os vivos – sabe viver muito tempo no silêncio, crê-lo-eis ensurdecedor, porque não sabemos parar de pensar, nem para dormir e os nossos sonhos já não são os sonhos simples dos nossos netos. De quando fomos nós os netos pequenos. Os sonhos dos meus netos serão muito bonitos se o mundo assim o quiser e me deixar.

Sinto-me o doce feroz no meio do amargo gentil em alguns dias, como naqueles dias cinzentos muito escuros em que chove e depois faz um sol alegre, onde as nuvens negras poucas, que não demasiadas raras vezes se vestem de um tímido arco-íris a fugir. Depois, é como se não tivesse havido o fusco e melancólico arco-íris, num misto de alegria e de tristeza, porque o presente é já passado. Não sei se estas paredes ensurdecem com os meus pensares.

Já vos bateram à porta a meio de um pensamento importante, para vos apregoarem um de Diversos Deuses? A mim já. Que perda de tempo. Por isso mesmo, hoje decidi ignorar sempre a campainha.

No entanto, naquele esquisito café esvaziado de uma ditosa personalidade, de mármore e negro vestido, sinto sofreguidão do saber ficar cheia de mim, sabendo logo após desejar estar crua num tu, sem nada das mágoas do mundo, esquecer, para te sentir a falta, expulsar-te de mim como te agarrei e porque gosto de te sentir a falta que dói sempre tanto, afinal, a dor faz parte da vida, aceitá-lo é meio-caminho para ser, mais vezes, feliz. Porque até aposto que virás. Gosto de saber que chegarás por aquela porta azul escuro-metal do meu quarto, sem nada dizeres, para que não te espere e sofra mais e para que ao chegares, esteja mais desassossegada e feliz. As pessoas não querem saber do bom que é estar à espera do desassossegamento. Estas pessoas, as do fazer tudo à pressa, namorar à pressa, casar à pressa, ter filhos à pressa, fazê-los à pressa, com marcação na agenda incluso, não querem ser felizes.

E sinto que não sou capaz de sorrir de alegria agora, seria capaz de sorrir de melancolia, mas não sou, não sei no silêncio sorrir, de todas as formas, é ultra-raro caso meu e neste café onde tu não moras desde o meu pensamento e onde não mora ninguém além de mim, neste café onde há mesas quadradas e cadeiras redondas, todas alinhadas às quatro e do mesmo tamanho, num espaço meio rectangular, espreita-me a solidão por detrás daquela porta castanha e luzidia que terei, enfim, num momento, de abrir, como essa porta escura dá entrada para um outro silêncio, cristalino, aquele no meio dos outros em que também não sei de ti e não te vou encontrar, aquela porta depois de ultrapassada mostra-me os outros, como eles não são e nem querem ser, réstia de tudo o que a vida não lhes levou, os outros são melindrosos e cheios de angústias, picuinhas, de  malas já feitas e de truques. Porque os outros dissimulam, mas tu não.

Olho a parede em volta e é de madeira também ela escura, que local mórbido e vazio de nada, penso agora, levanto-me, dirijo-me ao balcão, peço a continha, pago, saio, abro a porta e vou-me embora dali, que coisa chata, traz-me sentimentos ruins dum passado que já não tento transplantar todos os dias. Donde ninguém me sente a falta. E sorrio ao sair. Porque está sol lá fora e deixo-o atravessar-me por dentro de mim. Preciso. A vida sorri lá fora e vou ao teu encontro. Levar-te-ei ao lugar secreto, por onde se pode ouvir só o mar. Ouvir o mar. Não é de todo estar sozinho. O mar é a boa companhia dos pensamentos.

Só faltavas tu. Hoje fui-te raptar. Deixa-me envolver-te aqui na minha praia secreta de areia quente,  grão a grão uma e outra vez, de um Verão inacabado. Leva-me ao deserto dos teus pensamentos, mostra-me as convulsões que a vida carimbou em ti, prometo, voltarei a mim, acolhida em ti, em teus braços como o mar embala as ondas de um azul revolto.

Hoje voltei a sonhar contigo por aí.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

O equilíbrio entre a credibilidade externa e interna

Next Post

África e China – Declara-vos parceiros estratégicos para a vida

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next