Hoje enquanto estava de volta duns papéis encontrei um pequeno bilhete, dobrado em quatro e com a cor já muito amarelecida. Já nem me lembrava daquilo, mas a curiosidade, mais uma vez, levou a melhor. Abri-o. Rapidamente voltei a um dia, há muito tempo atrás, quando foi escrito e entregue. Tínhamos acabado de nos conhecer e estávamos na fase de pesquisa, mas estou em crer que os sentimentos estavam a ganhar um vasto terreno.
“Esta noite sonhei contigo e o teu cheio inundou todos os meus poros. senti o teu coração a bater junto ao meu e uma melodia que inundava a casa. Não sei viver sem ti e quero que a nossa vida seja vivida de mãos dadas e sempre juntos.”
Lá veio o meu namorado de eleição à baila. Ele era mesmo assim, amoroso e muito atencioso. Voltei à sensação de abrir o bilhete e de sentir aquelas palavras que, aos meus ouvidos eram tão doces e sentidas que quase chorei. Decididamente estava apaixonada. Acho que ainda sinto as suas mãos a tocarem o meu corpo. Primeiro indecisas e depois bem firmes e sólidas.
Mais tarde, soube que ele não era tão dado a confidências como foi naquele momento. Penso que aquela foi a altura em que ele percebeu que estava envolvido e não conseguia fugir. Curiosamente estávamos em sintonia e aquele papel era uma testemunha silenciosa de tudo o que se passou.
Ele tinha uma quantidade enorme de amigos e todos eles bem diferentes. Alguns valiam a pena, mas outros nem por isso. Na minha opinião, claro está. Como adolescente que era fazia disparates legítimos, mas inofensivos. Um desses amigos era especialmente bonito, mas tinha as contas fechadas com a inteligência. Penso que nunca gostou de mim, porque lhe roubava o amigo e ciúmes sempre foi uma coisa que nunca entendi.
O meu namorado era uma pessoa com algumas características dignas de nota, mas agora isso não interessa nada. O que me lembrou foi exactamente o facto de ser parvo e doido, como se esperava que fosse. Andava ás voltas com um exame de não sei o quê, ele fazia imensas coisas ao mesmo tempo e deixou-me o vício, que o preocupava bastante. Acabou por passar e foi festejar, como se impunha.
Nós éramos recém-namorados (se esta expressão não existe passa a existir) e ainda havia muito por descobrir, mas, cá para mim, ele estava bem apanhadinho por mim e era uma novidade para ele. Depois de ter bebido uma quantidade razoável de qualquer coisa que incorporasse álcool, começou a cantar. Estava como se costuma dizer “de caixão à cova”. Eu morava no último andar de um prédio que dava para um jardim. Namorávamos muito nesse local e fomos crescendo sem dar por isso.
As nossas conversas versavam assuntos variados e havia um certo despique entre os dois para ver quem sabia mais. Um falava de um assunto que o outro desconhecia e no dia seguinte o outro estava um especialista. Não havia Internet, mas sim livros e uns especiais chamados Enciclopédia. Que tempos fabulosos que foram e agora, a esta distância, sei que vivemos uma enorme experiência de que poucos se podem orgulhar.
O que é que o rapazinho se lembrou de fazer? Mesmo em frente ao meu prédio havia uma cabine telefónica que funcionou, durante a minha infância, como parque de jogos. Tudo servia para nos divertirmos. Belos tempos! Pegou em moedas, porque era assim que aquele aparelho funcionava, marcou o número da minha casa e o meu pai atendeu. O telefone fazia um barulho enorme e, no silêncio da noite, acordou-me. Quem seria?
O meu pai entra no meu quarto e diz-me: é para ti. Vi as horas. 1h30m da manhã. Atravessei o corredor e atendi. Do outro lado a voz doce e melosa dele declamava “Os Lusíadas”. “…As armas e os barões assinalados…” Eu desmanchei-me a rir e desliguei o telefone. Fui à janela e ele acenou-me. Chamou-me, mas eu não ia sair aquela hora. Fui-me deitar com uma coisinha no coração que me fez ter sonhos tão suaves e leves que voei até ao infinito.
Na manhã seguinte o meu pai, que sempre foi uma pessoa diferente e muito avançado para o seu tempo (algumas coisas tinham ficado no século anterior, mas ninguém é perfeito) olhou para mim e disse-me: o teu namorado é engraçado. Mas vê lá se não telefona tão tarde. Engraçado? Sim. Quem é que se lembra de declamar poesia naqueles preparos?
Preparos foi o eufemismo que o meu pai encontrou para a valente bebedeira que ele tinha e que demorou muito tempo até que finalmente desapareceu. No dia seguinte claro que a boca dele devia saber a papel de música e só lhe saíam monossílabos estúpidos que não faziam sentido. Sabem uma coisa? Foi a declaração de amor mais bonita que alguma vez recebi e continua guardada com imensa emoção.
O certo é que o bilhete fez avivar tanta coisa! Parei o que estava a fazer e só me lembrava daquela voz tão querida e quente que, entre os versos de Camões me disse outras palavras que ele nunca mais se lembrou e que eu, ingénua, mas muito feliz, nunca mais esqueci.