The olympic rings are on top of the eiffel tower

Blasfémia em Olimpo

As cerimónias de abertura de qualquer um dos Jogos Olímpicos são sempre motivo de curiosidade e motivo de acaloradas discussões. Se uns consideram genial, outros há que apontam falta de gosto. Com os Jogos Olímpicos de Paris (2024) não foi diferente e parece ter conseguido congregar os diferentes credos cristãos na sua condenação, desde bispos a pessoas “comuns”.

As críticas condenam a paródia da última ceia (de Jesus), a entrega da bandeira diante do bezerro de ouro, numa referência à estátua que o povo hebreu construir enquanto Moisés estava no Monte Sinai, e a representação de um dos Cavaleiros do Apocalipse.

Muitos cristãos sentiram-se ofendidos pela paródia feita à sua religião, apesar da organização ter referido por diversas vezes que não existia uma referência ao cristianismo.

Ainda assim, as acusações variam entre a heresia, blasfémia, intolerância religiosa, paganismo e sodomia ou exaltação da homossexualidade. Enfim, é o “colapso da civilização e da cultura cristã na Europa Ocidental, com travestis retratando a Última Ceia”, refere uma utilizadora da rede X, que ainda alerta que “esses psicopatas não vão parar!”.

Contrastando com este cenário, na redação do Charlie Hebdo, 15 pessoas foram mortas por um trio que se sentiu ofendido pela publicação de caricaturas que parodiavam um dos seus profetas. E o caso não era para menos, porque a caricatura visava o principal profeta no Islão. O Presidente francês, na época François Hollande, condenou prontamente o massacre, com outros líderes políticos, no que foi considerado um atentado à liberdade de expressão. Alguns grupos políticos aproveitaram esse episódio para argumentar que o Islão seria uma religião perigosa.

Agora, nove anos, temos um conjunto de paródias com imaginários bíblicos, apesar da comissão organizadora informar que se trata da representação da Festa dos Deuses (afinal os Jogos Olímpicos têm origem na Grécia antiga).

O modo diferenciado como foram tratados estes dois exemplos, é demonstrativo de uma certa dualidade de julgamentos: a liberdade de expressão é defendida quando os alvos são símbolos de um grupo externo, mas inaceitável quando toca nos símbolos do próprio grupo.

Esta dualidade de julgamentos pode ser explicada através da identidade social. A psicologia social sustenta que as pessoas tendem a categorizar-se e aos outros através de grupos sociais. Nós (endogrupo) e eles (exogrupo).

Num plano prático, resulta que temos a tendência a valorizar positivamente os membros do nosso grupo e a ver os membros dos outros grupos de forma menos favorável. Quando as caricaturas do Charlie Hebdo visaram a sacralidade do Islão (exogrupo), muitos cristãos defenderam que se tratava do direito de liberdade de expressão, aliás, parte dos valores ocidentais. 

Por outro lado, quando na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, alguns sentiram que os símbolos cristãos foram tocados, esse mesmo direito à liberdade de expressão foi considerado um sacrilégio e inaceitável por estar sujeito a uma suposta agenda de outros grupos, de uma alegada agenda LGBT+, como as críticas parecem apontar. Então, o que é aceitável para o outro, deixa de o ser quando somos nós.

É importante salientar que este texto não pretende generalizar, criticar todos os cristãos, ou qualquer outro grupo. Na verdade, muitos ignoraram ou procuraram ser imparciais no que toca a “ataques”, velados ou não. O importante é conseguirmos ter consciência do como formamos as nossas opiniões e como isso influencia os nossos relacionamentos com pessoas de outros grupos.

Não interpretamos o mundo de modo neutro, mas através das lentes da cultura a que pertencemos que molda a nossa identidade. O que é familiar, tende a ser aceite por nós como universalizável, desvalorizando outras culturas, e criando a crença de que a nossa cultura é superior e que um ataque ao nosso grupo é encarado como uma ofensa individual.

Num mundo onde a intolerância se faz mais saliente, este tipo de inteligência (intercultural) faz-se cada vez mais preciso.

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Natália Correia

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