A nota mais aguda, ou mais grave ouve-se ao longe e rapidamente se reconhece a música. As lembranças surgem e o som dos pensamentos insinua-se. A música que se ouve continua, então, a ser a mesma para todos, mas os pensamentos são únicos. Afinal, nenhum ser humano é igual a outro, mas o que faz de nós o que somos?
Há quem diga que existe uma espécie de núcleo, ou essência de nós mesmos para ser descoberto. Este está presente durante toda a vida e é uma verdade constante sobre aquilo que somos. O indivíduo acumula experiências, memórias, crenças, sensações e conhecimentos, os quais o ajudam a criar o que é. Porém, nasce com uma essência que se mantem durante toda a vida.
Esta ideia do senso comum é desafiada pelo jornalista e filósofo, que estuda as complexidades da identidade pessoal, Julian Baggini.
Existem desejos, crenças, experiências, intenções e sensações, mas todos estão interligados, segundo o filósofo. Então, não existe um “verdadeiro eu”, se o que se procura é um núcleo, uma essência, ou uma verdade imutável e permanente sobre nós, porque o que faz de nós o que somos é a soma destas partes. Baggini usa o exemplo de um relógio: esta peça é um conjunto de coisas que se juntam para a formar e não há qualquer relógio sem a junção das mesmas.
O raciocínio do filósofo é reforçado pela neurociência. Alguns estudos na área têm revelado que os processos mentais associados ao sentido do “eu” estão localizados em diferentes zonas do cérebro, não havendo nenhum ponto especial de convergência. O neuropsicólogo Paul Broks explica que o ser humano tem uma intuição profunda de que há um núcleo, uma essência, mas que a neurociência mostra que tal não existe. Não existe um núcleo onde tudo acontece.
Sem esta essência que se mantem ao longo de toda a vida, Baggini acredita que não somos seres permanentes, que estamos sempre a mudar. Não há uma essência que determine uma verdade absoluta sobre o que somos desde que nascemos até ao momento em que morremos. Cada indivíduo tem a capacidade de direcionar o seu desenvolvimento. Contudo, há limites para o que é possível alcançar. Não nos tornamos grandes cantores unicamente, porque queremos e treinamos muito. É preciso ter essa habilidade natural. Não somos grandes poetas, porque apreciamos a maior poesia. É preciso ter essa habilidade natural.
A capacidade de construir o “eu” existe. “O ‘verdadeiro eu’ não é algo que está ali apenas para ser descoberto”, defende Baggini. Não há um mistério para descobrir, uma verdade que devemos procurar para saber o que somos. O “verdadeiro eu” pode ser criado, pode ser construído.
Então, o que faz de nós o que somos? A soma de todas as partes dá origem ao “verdadeiro eu”. No entanto, se o ser humano é um animal social, vive e sobrevive socialmente, então, é possível construir-se isoladamente?
O “verdadeiro eu” é socialmente construído, ou seja, é moldado através da interação com outras pessoas. O antropólogo Marcel Mauss defende que a noção do “eu” não é uma categoria natural, ou puramente psicológica, individual, mas uma construção sócio-histórica-cultural. Há uma relação entre o indivíduo e a sociedade, sendo o indivíduo influenciado, nos níveis mais profundos, pela colectividade.
Cada indivíduo é parte integrante do todo social em que se encontra e, por isso, a fabricação do “verdadeiro eu” ocorre dentro de uma sociedade, mas a sociedade em que estamos inseridos determina totalmente aquilo que somos? Não. Todos os desejos, crenças, experiências, intenções e sensações interligados criam um “verdadeiro eu” em construção. Então, só a soma de todas as variáveis poderá oferecer uma resposta satisfatória à pergunta “quem sou?”