Quando o preconceito vira lei

A ascensão de um partido abertamente anti-imigração à Assembleia da República começou como um fenómeno marginal que muitos consideravam passageiro. Hoje, as suas ideias já moldam a agenda legislativa de um governo que prefere agir em função de perceções, em vez de enfrentar os problemas estruturais do país.

O governo iniciou a sua legislatura preocupado, não com os problemas reais das pessoas, como a habitação ou os rendimentos, mas com restrições à aquisição da nacionalidade por parte de estrangeiros e medidas mais restritivas a incidir sobre uma parte dos imigrantes (entenda-se: imigrantes pobres que vêm para Portugal tentar melhorar as suas condições de vida, já que os imigrantes ricos, vulgo investidores, podem confortavelmente instalar-se aqui).

O problema, agora, para este governo encostado à extrema-direita, é o existirem pessoas que se cobrem integralmente. Para o governo, não é um problema prioritário o existirem alunos sem professores ou a violência doméstica, mas, sim, o que mulheres de uma determinada religião vestem.

O projeto de lei proposto pressupõe existir o risco de pôr em causa o direito à segurança da comunidade nacional, mas, também, que as mulheres não tenham liberdade de escolha no modo como se apresentam na rua. Como solução, o Chega apresenta a proibição de ocultar o rosto com roupas ou a proibição de forçar alguém a ocultar o rosto.

Tendo em conta os considerandos do projeto de lei, claramente se conclui serem os muçulmanos a população visada. É irónico que um partido que defende o regresso do que considera serem os papéis tradicionais das mulheres enquanto donas de casa, venha propor uma lei que almeje a igualdade e liberdade das mulheres.

Diferentes pessoas e organizações, entretanto, já vieram criticar e condenar este projeto de lei, entre eles a Amnistia Internacional ou a Ordem dos Advogados e a Magistratura do Ministério Público, apontando as diferentes violações de direitos que implica.

Segundo os Censos 2021, em Portugal existem 8 781 900 pessoas com mais de 15 anos que se consideram religiosas. Destas, 36 480 são muçulmanas, ou seja, 0,41% da população que se identifica com uma religião. Embora os Censos não indiquem com mais detalhe qual ramo do Islão é professado (sunitas, xiitas, ismaelitas, ou outros), sabemos que a maioria dos muçulmanos em Portugal são sunitas.

A população muçulmana em Portugal, além de ser minoritária, é composta por pessoas de diferentes nacionalidades, como a portuguesa, marroquina, indonésia, egípcia, paquistanesa, entre outras. Por outro lado, é uma população que está integrada e sem registos de segregação ou ameaça à segurança pública.

É preciso notar que se trata de um projeto de lei apresentado por um partido da direita radical, que se caracteriza por ser islamofóbica e anti-imigração. Não por acaso, a segurança é enunciada como um dos pontos centrais à proibição do uso da burca, ou niqab, e estas roupas só são usadas por mulheres muçulmanas, olhadas com desdém por parte da extrema-direita.

No Islão, mulheres (e homens) vestirem-se com modéstia, à semelhança do cristianismo1 ou judaísmo2, é um dos princípios religiosos. Contudo, é ponto de discussão o que significa vestir-se com modéstia, existindo diferentes opiniões por parte dos teólogos. A opinião mais comum é a de que o uso de um lenço (hijab) que cubra o cabelo é suficiente. No entanto, para outros estudiosos, isso não é suficiente, sendo necessário cobrir todo o rosto também. É importante notar que a modéstia é sempre considerada enquanto forma de evitar que olhares sobre a pessoa.

O projeto de lei, animado por uma conceção preconceituosa relativamente ao islão, assenta nos seguintes pressupostos:

  • Pessoas (muçulmanas) que cobrem o rosto representam uma ameaça à sociedade.
  • Mulheres que usam o niqab ou a burca não o fazem por motivos religiosos, mas porque são obrigadas a fazê-lo.

Atualmente, a polícia já dispõe de meios legais que lhe permitem, a qualquer momento, pedir a identificação de pessoas que circulam no espaço público de rosto coberto.

Ao contrário do que a extrema-direita quer fazer passar, não existe um problema de segurança em Portugal. Na verdade, somos um dos países mais seguros no mundo e, obviamente, que não se nega que existam crimes, eles não acontecem na quantidade que os meios de comunicação dão a entender.

Relativamente ao aspeto religioso, o Chega e a AD partilham a mesma ideia acerca da mulher muçulmana: não tem vontade própria, já que a considera obrigada a usar, contra a sua vontade, determinadas roupas. Concordo que algumas poderão, de facto, ser, mas é altamente duvidoso que a maioria o seja, especialmente se tivermos em conta que se trata de um traje com origem numa interpretação mais rigorosa de um preceito religioso.

A lógica da “libertação” da mulher que usa burca ou niqab é extremamente contraproducente. Ao assumir que todas as mulheres que usam um destes trajes é obrigada a fazê-lo, ignora-se que existem mulheres que, por convicção, não querem mesmo mostrar o rosto. Mais ainda, mesmo assumindo que existe essa obrigatoriedade imposta por um homem, o mero ato de proibir que se circule na rua com esse traje irá forçar muitas mulheres a não saírem de casa, numa consequência ainda pior para a sua liberdade.

E se o legislador está tão preocupado com a libertação da mulher, já pensou que é momento de libertar a mulher cristã do uso do hábito? Ou que já é momento de as «libertar» dos conventos onde existem votos de silêncio ou dos quais não podem sair pelos votos feitos? Por que não proibir o sofrimento autoinfligido dos muitos peregrinos em Fátima?

A mera ideia de proibir uma freira de usar o hábito causa repugnância, porque é sabido que o usam por motivações religiosas. Qual é, então, a diferença entre uma freira que usa véu e uma mulher muçulmana, que decide também usar o véu? São ambas igualmente oprimidas? Há uma subvalorização da freira, para que fim lhe é imposto um véu? E o que dizer, então, dos votos de celibato impostos? Devem também estes ser alvo de legislação porque pessoas são obrigadas a viver castamente?

Se existissem mais judeus heredim em Portugal, teríamos a mesma abordagem em relação ao seu vestuário? As mulheres deste grupo de judeus ortodoxo, que seguem uma interpretação estrita da lei judaica, também usam um vestuário semelhante à burca. A mera tentativa de proibição deste vestuário a este grupo iria ter um posicionamento completamente diferente entre a maioria dos comentadores e deputados.

A garantia da segurança pública deve existir. Contudo, esta garantia não deve existir à custa de direitos de minorias religiosas. Até ao momento, não existem evidências de que a ocultação do rosto como sinal de expressão religiosa cause problemas ou sequer pânico na sociedade.

Este projeto de lei é uma forma de atacar a prática religiosa de uma comunidade. A ideia de insegurança só acontece, porque existe um preconceito relativamente aos muçulmanos, os quais são injustamente retratados como extremistas, numa dualidade de critérios.

Tentar uma «libertação» forçada de mulheres desconsiderando as suas opiniões e o que têm a dizer sobre as suas práticas religiosas é assumir uma posição paternalista. É um governo que quer ditar sobre o que uma mulher pode ou não vestir, punindo quem, de acordo com a sua consciência, entende que salvaguardar a modéstia e, inclusive, não mostrar o rosto.

É, também, menosprezar todo e qualquer direito, não somente a liberdade de se expressarem, como também uma violação ao direito de identidade individual. O modo como nos vestimos representa escolhas políticas e religiosas, entre outras, e isso também é parte da expressão da nossa identidade. É negar o direito de consciência e o direito de livremente viver de acordo com princípios religiosos que se consideram importantes.

Quando o medo se torna num critério político, a liberdade de todos fica em risco. Por isso, assistimos a um governo que quer ser forte com os fracos; que, em vez de resolver problemas que a maioria das pessoas enfrenta no seu dia a dia, prefere legislar em função de perceções do que considera que lhe será mais favorável em eleições seguintes.

Um governo forte com os fracos é, na verdade, um governo à deriva, fraco e assustado com a ideia de não conseguir renovar o mandato. É a escolha deliberada de fomentar um conflito artificial com uma comunidade religiosa totalmente integrada e de quem não existem problemas de segurança registados. A forma como tratamos as minorias revela a solidez de uma democracia e quando o preconceito se torna lei, a liberdade da maioria se torna cada vez mais vulnerável.

1Cf. 1 Timóteo 2:9-10

2Vale a pena ler a resposta de um rabino à pergunta de uma pessoa que não sabia se uma mulher judia podia ou não usar calças.

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