O Memorial do Convento

Este livro é de leitura obrigatória no 12º ano de escolaridade, o que leva logo a uma forte recusa do público estudantil. É uma obra complexa que deve ser analisada detalhadamente e a sua leitura deve ser preparada. A escrita de Saramago não é fácil, talvez devido ao modo peculiar que usa, na ausência de pontuação e ao encadeamento de raciocínios complexos que levam o leitor a reler as páginas anteriores. É uma técnica interessante e não é para qualquer um. É preciso entender e ter maturidade para mergulhar nos seus livros, entrar nas suas histórias e nesta, em particular, que se pode analisar em sistema triangular. O título é meramente informativo, pois é uma das histórias que é contada, a construção do mosteiro, fruto da promessa do rei D. João V a frei António, se a rainha engravidasse. De facto, a história que nos vai prender mais será a de Baltazar e de Blimunda, duas pessoas do povo com característica únicas, que nos levam numa viagem apaixonante, cheia de altos e baixos, encontros e desencontros. Na realidade, podemos resumir o livro a três narrativas entrelaçadas: a relação do rei e da rainha, a construção do mosteiro e a história de Baltazar, sete sóis, porque via às claras e Blimunda, sete luas, porque vê no escuro.

Esta obra é inovadora em todos os aspectos. Primeiro, porque vai dar relevo a pessoas do povo, vai falar de sentimentos e apresentar personagens diferentes, depois, porque enaltece a mulher e o seu papel enquanto ser humano e construtora de uma sociedade, o ser mágico que tudo consegue e, finalmente, pela luta de classes, pela consciencialização dum povo que labuta e não vê os seus direitos reconhecidos. Encontramos aqui, o bem e o mal, o rico e o pobre, o trabalhador e o ocioso, o amor e o desprezo, o interesse e a vontade, a ciência e a cegueira religiosa, a realidade e a ficção.

Primeiro triângulo: o rei e a rainha. Um casamento por arranjo político entre Portugal e a Áustria. O rei cumpre as obrigações conjugais, a rainha submete-se, magistralmente descrito no primeiro capítulo, onde somos espectadores dos seus actos, para assegurar a descendência. Ela está apaixonada por Francisco, o seu cunhado, com quem tem sonhos eróticos, mas, sendo uma mulher, não pode ter nem sentimentos e muito menos desejos. É o amor convencional, de convenção, casamento oficial.

Segundo triângulo: Baltazar, Blimunda e Bartolomeu. Entre os dois primeiros existe um amor verdadeiro, puro, sensual e físico. Bartolomeu, padre, é o transgressor, o homem da ciência que vê mais além da religião a que pertence. Nunca sabemos como conheceu Blimunda, mas é irrelevante e aceita todas as suas decisões, acabando por casar o casal que o ajudará a construir a passarola. Esta passarola, símbolo de liberdade, de abertura de mentalidade, de novidade, é baseada nos estudos de Leonardo da Vinci e, efectivamente, existiu, foi real.

Terceiro triângulo: o mosteiro, o rei e os trabalhadores. O magnânimo põe e dispõe da vida dos seus súbditos, sem os olhar e muito menos os ver. São pedras de um edifício, pedaços de vidas sem interesse, mas úteis e necessárias para a conclusão da obra.  E assim o mosteiro fica feito, em honra de D. Maria Bárbara, que nunca o visitará e só saberá da sua existência por um mero acaso, a caminho do seu casamento.

Da relação real convém acrescentar que o rei já tinha um batalhão de bastardos e estava casado com D. Maria Ana havia dois anos, sem descendência. Quando o frei lhe pede a construção dum mosteiro, já está consciente que a rainha está grávida e manipula o rei. A igreja a dominar a mente, como habilmente fazia na época. A promessa era para o primeiro filho e depois vieram mais outros, sendo seu herdeiro, D. José I, uma vez que o sistema português é sucedido por ordem agnática.

Baltazar é um soldado que perdeu uma mão, já não tem préstimo. Desloca-se de Jerez de los Caballeros até Lisboa para pedir uma pensão ao rei. Em Lisboa, depara-se com um auto-de-fé, onde a mãe de Blimunda é condenada ao degredo, por feitiçaria. Blimunda tem os olhos duma cor que nunca saberemos e é detentora de um poder único: consegue ler as pessoas por dentro. Está acompanhada de Bartolomeu. Nessa mesma noite, deita-se com Baltazar e perde a virgindade, entrega-se ao homem que vai amar durante toda uma vida, sem convenções nem tradições. Promete não o ver por dentro e come sempre pão, quando acorda, porque a sua capacidade manifesta-se em jejum. Temos aqui duas personagens únicas: o deficiente, porque não tem uma mão, mas que trabalha como outro qualquer, e a mulher mágica, mas não bruxa, a feitiçaria positiva, que vai ajudar na construção da passarola. É ela que vai recolher as “vontades” que são o éter que fará a máquina voar, sempre apoiados pelo padre de quem são cúmplices e aliados. Um padre que é perseguido pela Inquisição e que desafia os limites da religião. A família de Baltazar é de Mafra e também ele vai trabalhar nas obras do mosteiro. Todos eram precisos para a sua conclusão, incluindo as mulheres, e o edifício do Alto da Vela ficará concluído por imposição real.

De realçar o modo como os trabalhadores são retratados, humanos, pessoas, seres sensíveis e não tijolos dum edifício. Tudo é descrito ao pormenor, o transporte da pedra, os bois, a morte do trabalhador e as reuniões de fim do dia, onde são feitos os desabafos de cada um. É um retrato dum reino, pequeno em tamanho, mas enorme em diversidade e assimetrias. A necessidade, a fome e a miséria afastam as famílias e provocam grande sofrimento.

É elaborado um relato de um reino onde o rei vive faustosamente, mas o povo está na maior das misérias e desgraça. O ouro do Brasil era só para a família real e o povo subjugava-se ao que lhe exigiam. O mosteiro incorpora não só as pedras, os tijolos, as massas, mas também os cadáveres dos que lá faleceram e pedaços das almas dos que lá trabalharam.

O livro é composto por 25 capítulos, o que, em numeralogia vai dar o numero 7, o número dos alquimistas, a magia de transformar o metal em ouro, aqui o ouro do intelecto, a magia da viagem que acompanhámos e que nos deliciou. Um dos capítulos mais emblemáticos é o primeiro, que mostra um rei infantil, jovem e fértil, a construir, em altura, um brinquedo, que simboliza a sua virilidade. A rainha é descrita como recatada e obediente, como convinha e era desejável, não tendo nenhum papel interventivo. Por oposição, temos Blimunda, a mulher dos 7 ofícios, a mulher que sabia ler as pessoas, que via no escuro, que era dotada de poderes mágicos e que nunca desiste de procurar o seu homem. No último capitulo, ela vai encontrá-lo, finalmente, depois de anos à sua procura e, como prova do seu amor, recolhe a sua “vontade”, antes de este ser supliciado na fogueira. Ficarão, assim, os dois juntos, para sempre.

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