O relógio marca 22 horas e 53 minutos. A agitação é grande e aceleram-se os preparativos. Os seis elementos que compõem a banda estão em posição e faz-se o último soundcheck da noite. Ao canto de uma sala, numa casa em ruínas, quatro rapazes, sentados numa mesa de plástico branco, bebem litrosas de cerveja e vagueiam os olhos pela festa em redor. “31 sob 7, take 2. Obrigado” vem da voz que bate a claquete.
A banda reggae Lions di Polon (Leões do Porão) não se cansa de tocar e as pessoas já transpiram de dançar. Por momentos a música para e ouve-se: “Olá companheiro, tudo bem, ou não? Estou contente por te ver, mas não vás, fica aqui um bocadinho. Senta-te, mas não precisas de te afastar que ninguém te faz mal”, disse uma voz assertivamente autoritária a um rapaz acabado de chegar. Em crioulo cabo-verdiano, surge uma voz inimiga que os despeja da mesa numa agressividade arrepiante: “estragam a festa de bom reggae, bom convívio. Desaparece com esse rapaz.” Ninguém se movimenta.
“Ok, está bom”, afirma suavemente uma voz que surge com uma pequena máquina de filmar, ao mesmo tempo que uma cadeira, de um branco sujo, é afastada. Em direcção ao operador de câmara, em passos curtos, aparece Máfia, alcunha de Pedro Lopes, o protagonista de Até ver a Luz, longa-metragem do realizador Basil da Cunha filmada na Reboleira.
A primeira longa-metragem do luso-helvético, com apenas 27 anos, tropeça num percurso feito de curtas-metragens e de prémios ganhos no Festival de Cannes e Vila do Conde. Até ver a Luz narra a história de um homem marginalizado pelas pessoas com quem convive. Recentemente saído da prisão e acolhido por um primo, Sombra, personagem de Pedro Lopes, é acusado de roubar toda a droga do maior traficante da zona. Uma história arrepiante, onde a personagem fictícia e a real se descobrem numa história que lhes é, em alguns momentos, comum.
O luso-cabo-verdiano Pedro Lopes nasceu em terras portuguesas há 31 anos e carrega uma pesada bagagem feita de sonhos destruídos. “Não quero ver o meu irmão mais novo fazer o que eu fiz. Se eles hoje querem uns ténis têm. Eu nem tinha dinheiro para comprar uns.”
Pedro Lopes admite, de lágrimas gravadas no rosto, que a condição embrionária da vida o fez resignar-se com tudo o que o envolvia. “É difícil crescer sem a mãe. Pais há muitos, mas mães há só uma.”
Num radiante entardecer, esgotado pela pobreza bairrista, o actor de Até ver a Luz, melancolicamente bem disposto, confessa que “não há oportunidades. Sinto a fome na barriga, mas vou-me aguentando. Tenho a minha casa, o meu fogão, a minha bilha de gás e vivo assim o meu dia-a-dia.”
Embora o protagonista de Sombra considere que o futuro “não é chegar aos 40 e estar a beber taças de vinho no café“, Basil da Cunha, nascido em Lausanne, Suíça, afirma com convicção que o Máfia foi, até hoje, o melhor actor com quem trabalhou, “porque soube carregar nos ombros um papel complicado. Trouxe muito dele, do que passou, do que viveu. É uma pessoa disciplinada. Soube exprimir-se com mais liberdade e isso foi excelente. Ele é bom em tudo. É bom nos diálogos, é bom nos silêncios, no olhar” e que pode vir a ter um futuro promissor na área da representação.
Com quatro anos de experiência no mundo cinematográfico, Basil da Cunha reconhece as dificuldades da comunidade reboleira e, embora considere que deu a oportunidade de algumas pessoas fazerem o que nunca tinham feito, remata: “não sou salvador da pátria.”