Ritinha, meu amor

Estou, mais uma vez, no meu sofá junto à varanda, por onde entra o sol de inverno. Perto de mim, como em tantas outras vezes, dorme a minha cadela, a Rita, a minha caninossaura nos seus 15 anos e meio de vida. Podia ser só mais um dia em que escrevo.
Dorme um sono tranquilo, aninhada, com o polar vermelho que lhe visto, pela sua extensa idade. Podia ser só mais uma soneca. Contudo, não é. Estou aqui, a olhá-la de quando em vez, controlando o número de respirações por minuto. Outras vezes levanto-me e tento escancarar-lhe a boca, para verificar se as mucosas estão rosadas. Está tudo bem, por agora.
Ontem fomos ao veterinário. Para umas simples e rotineiras vacinas. Conversa puxa conversa, e apesar do excelente e enérgico aspecto dela para um cão desta idade, das artroses, cataratas e alguma surdez, refiro que bebe muita água e urina bastante, o que levou o veterinário a efectuar análises, em busca da diabetes. Quando se procura, acha-se, diz o povo. E não se encontrou diabetes, mas um elevado número de neutrófilos, o que significa infecção.
Prosseguimos com um raio-x. E mais uma vez, encontrámos algo que o seu bom aspecto não demonstra: uma sombra grande junto ao pulmão, localizada e restrita. Mantive-me racional, nem sei como, e autorizei uma tac, com anestesia e contraste, que será feito amanhã, em busca de um entendimento.
Volto a olhá-la. Levanta a cabeça a certificar-se que estou junto a ela, volta a enrolar-se e continua o pacífico sono, alheia a tudo isto que me perturba. Hoje não sairei de casa, estarei só com ela. O exame de amanhã é de risco, e temo por aquilo que não consigo dizer. Deixá-la-ei de manhã cedo, para a preparação, e se tudo correr bem, buscá-la-ei pelo fim de tarde, após o recobro. Já me imaginei mil vezes a deixá-la no veterinário e, em cada uma dessas vezes, temo dolorosamente que já não a encontre ao fim do dia, ou que me liguem a dar uma notícia que não quero ouvir.
Estou, ainda assim, a tentar segurar-me com a racionalidade, que me esforço por manter. Penso que poderá ser só um susto. Que poderá ser algo pouco gravoso. Ou algo que se trate facilmente. E tudo isto é válido e possível. Mas depois, penso que nesta idade, quase 16 anos, o alívio, se se concretizar, não será de longo termo. Se sobreviver, haverá outros sustos, em forma de declínio ou súbitos.
Não posso pedir-lhe a ela, ou a Deus, ou ao veterinário, a imortalidade. Sei que um dia, sobrevivendo-lhe eu, o sofrimento virá em forma de ausência. Enquanto a racionalidade mo permite, e pretendo mantê-la o mais possível, chamo a mim as decisões há muito tomadas, desde que lido com animais.
Uma delas é iliba-la do sofrimento. O meu é garantido, hoje ou sempre, seja em que condições for. O dela, não. E no que depender de mim, viverá enquanto tenha vontade de o fazer, coisas que se nota num olhar que se alegra quando nos vê, ou na língua que lambe os beiços quando come fiambre, ou quando a palavra Rua lhe traz energias não sei de onde. Custar-me-á horrores. Mas a mim, só a mim. Aguentarei, por amor.
A outra decisão que pretendo cumprir, é não permitir que o desgosto me impeça de amar e de ter outros animais. Tantos há nos abrigos a precisar de um dono cuidador. E não, não me sentirei culpada, como viúva alegre que rapidamente encontra um outro amor. O amor aos animais não exige exclusividade, e estes não se substituem, são sentimentos que coexistem em paz. Sei que ela o entenderia, se tivesse hipóteses de lho perguntar.
Escrevo isto, e penso, ao mesmo tempo que espero, amanhã ou depois achar que este sentimento foi precipitado e que não havia necessidade de passar por esta dor antecipadamente. Depois revejo-me a entrar no veterinário e o perigo é presente.
Estou sem saber o que pensar. As pessoas com quem falei sobre isto dizem-me que me prepare, seja lá isso o que for. Não há como, como bem me disse o veterinário com quem tive uma conversa de peito aberto. Sei que a intenção das pessoas é boa, mas são palavras vazias, usadas quando não se sabe como confortar alguém.
Ainda assim, estou tranquila, sabendo que, seja o que for que vier pelo caminho, farei tudo o que está ao meu alcance para garantir o seu bem-estar. Nem que seja antecipar-lhe a mortalidade, com a certeza de que foi, e será sempre muito amada.
Olho-a de novo e conto as respirações, 20 por minuto. Está bem assim. Tudo o que temos é agora. E enquanto existirmos ambas, o amor está ainda em construção. Depois, será uma grata e doce memória em mim.
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