Falávamos de sonhos e de futuros

Falávamos de sonhos e de futuros.

Pancadas secas no teu próprio peito. Ordenas ao coração que bata sincopado. Inspiras e expiras e o que saem do teu peito são corvos, corvos mudos que não gastam palavras contigo, corvos mudos que esvoaçam à tua volta desequilibrados, confusos, desalinhados, na dúvida sobre onde estão e de onde saíram. No teu peito, onde bateste há uns segundos, já só há um buraco gigante em forma de ilusão. Os corvos reordenam-se, sem grasnar, sem qualquer som além do desespero das asas brilhantes e perdidas, que batem batem batem. Olham o horizonte e voam. Arrastam contigo os fios anémicos que te mantinham presa ao mundo.

Foi a primeira vez que te vi levantar os pés do chão.

Em cima de um muro de betão, os olhos verdes e azuis dos gatos observam-te entre o assombro e o delírio. Olhos enormes entre o pêlo preto, amarelo, cinzento, os músculos espantados, como se aqueles felinos fossem humanos que não se permitissem acreditar na magia. Impensável: só os humanos lutam contra o óbvio.

És uma marioneta perfeita, os corvos que te controlam os fios são cavalos com rédeas que te levam para longe de tudo o que conhecemos. Deixas-te levar. Como sempre deixaste por quem te correspondesse um sorriso. Não tinhas um átomo de medo em ti quando, de forma desajeitada, levantavas um pouco a tua pele e dizias a desconhecidos “anda, entra”. Os loucos nunca entraram. Mas houve quem te fizesse feliz.

Agora já voas.

Os gatos observam-te, deitados, menos surpreendidos. Alguns até te ignoram, lambendo as patas muito abertas numa atenção egoísta. Tenho inveja das suas certezas.

Vejo-te saltar entre a sombra dos prédios e fico com a convicção que és dois. De repente enervo-me. Na sombra parece que danças com um amante, que o teu peito aberto não é mais do que o espaço quase fechado entre vocês dois, entre os vossos dois pescoços tão próximos que prometem beijos e segredos. Tenho ciúmes. E no entanto olho-te cada vez mais alto e vejo-te sozinha, pés descalços em ponta para uma dança que não existe, os pássaros a querer voar para mais longe e mais longe, os fios que te agarram o peito, és uma criança que passeia os seus balões. As sombras fizeram com que eu me mentisse. Como são curiosas as perspectivas. Ridículas, até. Eu, com tantos, tantos ciúmes do que as sombras pareciam esconder, acreditando naquela realidade platónica. Penso: será que eu passo pela tua cabeça como tu passas pela minha?

Olho para ti no alto. Os fios quebradiços, a ameaçar. Nada te pára. O céu incrivelmente escuro, cinza, preto. E tu brilhante, cada vez mais te aproximas mais, és também um corvo, és também a chuva, és também o vento.

Os fios frágeis partem-se.

Os corvos grasnam em sofrimento, de novo as asas a bater bater bater, o som do terror e da incompreensão. Baços e moribundos, voam com inquietação para todo o lado, as asas que batem a ritmos diferentes parecem cada vez mais lentas e mais lentas e mais lentas. Assustados com o invisível, fogem para dentro do teu peito. Esse espaço louco e liberto, que um segundo antes tinha a forma da ilusão, torna a ser pele e músculo. Os corvos voltaram a ser coração a bater, voltaram a ser sonhos no peito. Com os fios quebrados, cais no meu colo e entro-te na pele.

Sorris-me, embaraçada. Parece que te deixaste levar um pouco por esses sonhos de que falávamos, não é? Parece que te deixaste ser um bocadinho feliz.

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