O limite do nada – Parte III (o Depois)

Abraçaram-se.

Contra a cara dela sentiu as lágrimas da mulher, fios de dor e saudade que percorriam as suas rugas profundas. De quantas memórias seriam compostas aquelas lágrimas. De quantas rotinas e maravilhas aqueles braços que a apertavam, com força, para se assegurarem de que ela era real. Trinta anos depois. A mulher tinha murchado, mas a força e a vida pareciam ter parado no tempo.

Depois de visitarem o cemitério, beberam chá ao som da madeira que se queixava no fogo. Não nevava. Há muito tempo que não nevava na vila. Os olhos delas pareciam fugir para dentro, para o que sentiam e se recordavam e tinham imaginado. Havia perguntas no ar, histórias incríveis, notícias desoladoras. Cruzavam olhares e sorriam com uma felicidade muito pequenina que as enchia de conforto.

“Queres ir?” perguntou-lhe a voz cansada.

Foram, agarradas da mão.

Atravessaram a ponte de pedra em direcção ao horror. A casa tinha sido derrubada. Nenhuma planta se tinha atrevido a crescer ali. Um rectângulo de vazio e de maldade. Talvez até fosse mais assustador assim, como se a qualquer momento tudo de errado pudesse acontecer. Custava respirar. Custava engolir.

Ela quebrou o silêncio: “Sabes que se matou.”

As duas apertaram a mão uma da outra com força. O consolo de quem quer dizer tudo mas sabe que não há nada a fazer. Suspiraram. A dor era um círculo que se tinha fechado.

*

Trinta anos antes, aquela mulher tinha sido a primeira pessoa a chegar à casa. Agradeceu à senhora que tinha acolhido as crianças, abraçou a menina e abriu o saco para ver a bebé. Aquela mulher era polícia. E conhecia bem quem poderia ser o culpado.

Levou pessoalmente a menina até casa dos pais. Temeu a culpa que lhe viu nos olhos, a incompreensão. Ocos. Quebrados. Pediu aos pais para terem atenção. Deu à irmã mais nova o seu número pessoal. E depois voltou para a vila a tempo do funeral da mãe da bebé, da bebé e do seu próprio filho.

Filho. Não quis ver os sinais. Não quis. Mas depois aquela mulher assustada apareceu na esquadra e disse que tinha duas crianças perdidas em casa, surgidas da direcção da casa abandonada. Ela lembrou-se: onde o filho adorava ir em segredo. Sentiu o estômago frio e não soube como permanecer cega, como inventar fábulas, como ignorar quem o filho era. Informou os colegas e retirou-se de cena. Só pediu para ser ela a levar a menina aos pais, quando os localizassem.

Aquela maldita casa abandonada. Ninguém na vila se aproximava com medo de mitos antigos sobre maldições africanas de escravos, sobre crimes impossíveis que se repetiam por gerações, sobre o que estaria escondido no sótão, nas paredes, nos jardins. Se alguém se tivesse aproximado e visto ou ouvido algo a tempo. Se a casa nunca tivesse existido. Se, se, se. Os “ses” não apagavam os animais enterrados no seu quintal. Nem as perversidades feitas a outras crianças. Nem o buraco na alma do filho.

A mãe da bebé tinha morrido. Mas também tinha conseguido matá-lo. Ela não quis saber como, não viu fotografias da cena do crime, não falou com os colegas. Foi ao funeral do filho e chorou abraçada ao marido, as únicas pessoas que viram o caixão desaparecer no interior do mundo e que sentiram o peso da dor e do alívio ao mesmo tempo. Foi também ao funeral da rapariga e da sua bebé, mas de longe. Sentia-se impura, culpada, vítima. Não tirou da cabeça a imagem da bebé morta. Da neta. Era sua neta, soube-o logo.

Não, os “ses” não apagavam nada. Tal como a sua cegueira não tinha apagado.

*

“Já imaginava”, respondeu num fio de voz. “Já imaginava.”

Observou melhor aquela menina, aquela mulher, que lhe segurava na mão com a ternura de quem perdoa, de quem esquece, de quem percebe.

“Esse peso era meu” continuou. “Agora ela morreu. E eu continuo aqui, meio imortal, a sobreviver a todos. O peso era meu. Eu devia ter sabido tirar-lho.”

“Não.”

“Sim. As drogas, isso tudo, enfim, quis fugir, eu sei. Quis fugir do que viveu naqueles dias, da rapariga que a salvou, da bebé sem vida que arrastou enquanto fugia. Vi-o nos olhos dela. Vi logo. Vi logo e ignorei outra vez e agora ela matou-se. E olha que tu bem me contaste. Bem me contaste.”

A menina-mulher baixou o olhar. Tinha-lhe ligado muitas vezes ao longo dos anos a contar como estava a irmã mais velha – os pesadelos, o silêncio, a agressividade, o choro, os aniversários, a droga. E ela atendeu sempre, sempre. Lembrava-se constantemente delas – atravessavam-lhe os pensamentos, os sonhos, os risos, protagonizavam histórias que ela contava ao marido, misturavam-se na emoção agridoce que lhe provocava uma fotografia do filho. Nunca se esqueceu delas, nunca. Mas também nunca mais as visitou. Até que um dia as chamadas pararam. Até que um dia lhe bateram à porta de casa.

Sentia-se cansada. A menina-mulher colocou-lhe o braço à volta dos ombros e apertou-a com força. Com a força de quem quer falar mas reconhece os momentos de inutilidade das palavras. Ela pôs as mãos nos olhos e chorou.

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