Os carros a apitar no trânsito, as pessoas a falar ao telemóvel, o barulho da vida a correr na calçada. Tudo sempre tão igual, e tu agora tão diferente.
Foi o silêncio que te contou, não foi? Foi o silêncio que te segredou que já só restava uma bolha gigante de solidão. Foi o silêncio que te desvendou como estava tudo torto e descarrilado. Faltavam demasiadas coisas, faltava sempre um bocadinho mais. Quando percebeste, o teu coração saltou para fora da ilusão e tornou-se medroso, ridículo, uma árvore que tenta apanhar as folhas secas que lhe vão caindo.
E depois, o fim.
O quarto parece que está sempre gelado, até quando bate o sol, até quando ligas o aquecedor. Um dia, foi quente e alegre e tão cheio do vosso cheiro. Agora, é só bafio e exílio. O cheiro do falhanço, achas tu. Não queres sair de debaixo da manta. Não queres levantar-te e encarar que o tempo continua a avançar e que tu estás fora de sítio. Incapaz de sair desse deserto em que te tornaste – nem sabes se queres, na auto-comiseração passaste a conhecer-te de novo, agora não sabes dar um novo passo e voltar a ser diferente do que eras ontem, do que és hoje. O eco dos risos que te chega através da janela dói na pele. À tua volta, são as coisas pequenas que te lixam: uma única toalha onde antes cabiam duas. Apenas uma escova de dentes gasta. O lado direito da cama por usar, com uma almofada que poderia estar quente, que poderia ter cabelos e vincos e desarrumação, mas que está tão perfeita como numa fotografia de um hotel. Duas canecas para uma só pessoa.
Há muito tempo, a assinatura de um papel que prometia sonhos.
Os sonhos: «Tens os olhos mais bonitos que eu conheço!» E tu refutavas: «São castanhos, iguais aos de toda a gente…» E desmentiam-te: «Não são iguais aos de ninguém. São grandes e expressivos e brilhantes. Tudo em ti é o mais bonito que eu já conheci.»
(Mas isso foi antes. Antes. Antes de conhecerem Universos imensos sem escala possível, completos de outras maravilhas, outras belezas, outros pensamentos, e tu ali, apenas um microcosmos tão à escala real e sem qualquer fantasia.)
Depois, a assinatura de um papel que quebrava pessoas.
Os pedaços: As fotografias daquela altura – as que ainda não conseguiste tirar das paredes e de cima das estantes – só te gritam o quanto mudaste e o quanto perdeste. Só te gritam que falhaste, continuas a achar tu. E já nem medes o tempo que passa enquanto tens os olhos fechados, os olhos fechados sempre, medrosos de abrir e de ver.
(O que estará o amor agora a fazer tão longe de ti? Não te atreves a imaginar os risos e o alívio alheio.)
Mas um dia, lá fora, os ecos são agora de música, do som quebrado de um gira-discos. Há quanto tempo não ouvias música num gira-discos…! Um vizinho desafinado canta uma música antiga. Sentes que o sol te bate forte nos braços, sem perceberes que é um dia de chuva. Quando te levantas, não te lembras de que o corpo já não te dói e de repente torna-se intolerável a vontade de ler as mensagens ignoradas, de beber uma cerveja, de dar uma gargalhada. E dás, quando o vizinho canta mais alto. E não consegues parar, e ele continua a cantar, e talvez até chores, e talvez nem te importe mais quem falhou. Sentes o frio do quarto e sabe-te bem. O calor voltou, ou está a caminho de chegar a ti. Haverá sempre uma flor a vencer muros, a vencer a calçada. E entendes que são também as coisas pequenas que te salvam.