A série mais bem-sucedida na televisão norte-americana é Empire, uma versão hip-hop do clássico Dinastia, onde um confronto emocional inspira um número musical, onde uma homofobia institucionalizada é uma constante e onde os diálogos são, muitas vezes, compostos por ataques verbais. As suas audiências são as melhores que uma série estreante alguma vez alcançou este século. A sua banda sonora conseguiu roubar o primeiro lugar dos tops musicais a Rebel Heart de Madonna e, nos Estados Unidos da América, todos os sites, blogues e podcasts estão repletos de segmentos que pretendem explicar o vício que Empire é.
Em 2009, a série mais vista no mundo inteiro era Glee. Cada momento melodramático inspirava um número musical, a homofobia institucionalizada era uma história sem fim e os diálogos estavam repletos de one-liners fabulosos. As audiências ultrapassavam os 15 milhões, os tops de venda de música estavam quase todos cheios de músicas interpretadas por Glee e a série era um tema fascinante para uma geração inteira de jovens. Porém, já não estamos em 2009 e o Glee, cuja sexta e última temporada terminou recentemente, há muito que perdeu o seu estatuto de fenómeno cultural. A época em que as bandas sonoras criadas pela série ocupavam grande parte das tabelas de vendas terminou durante a sua terceira temporada. A sua devota audiência foi decrescendo até ao ponto de nem conseguir alcançar os 2 milhões de espectadores.
Se Glee é o fantasma do Natal futuro de Empire, o que é que a nova série em ascensão pode aprender com a queda em “desgraça” da série que deixou o mundo inteiro a cantarolar? Basicamente, pode tentar fugir ao excesso de exposição que levou o criador de Glee, Ryan Murphy, a assinar um contrato para que o elenco fizesse uma tour de concertos, um filme em 3D, jogos, uma série de livros e o The Glee Project – um programa de talentos que oferecia papéis secundários aos seus vencedores.
O segundo erro cometido por Murphy foi deixar que a música ditasse o desenvolvimento da história. Na sua temporada de estreia, as canções tinham uma dinâmica semelhante a de um musical: elevavam uma emoção e faziam com que o enredo avançasse. Assim que a tabela do iTunes ficou repleta de canções adquiridas mal o episódio terminasse, vender música tornou-se em algo mais importante do que desenvolver correctamente uma história coerente. Por isso é que a segunda temporada foi invadida por terríveis episódios temáticos sobre a Madonna, a Britney, os Beatles, o Michael Jackson e o Rocky Horror.
Contudo, a ruína do criador da série foi a de decidir abusar da caracterização de vítimas que as suas personagens foram ganhando. Desde o seu início, Glee sempre foi uma série sobre os alunos desprezados num liceu dominado pelos desportistas. O clube Glee era o local de inclusão destes Zés Ninguém – a motivada nerd do teatro, o vistoso rapaz homossexual assustado de mais para se aceitar a si mesmo, a afro-americana com excesso de peso e o rapaz preso a uma cadeira de rodas. Sob a alçada do professor de música e colega falhado, Will Schuester, esta trágica banda aprendeu a ultrapassar o mundo que as rodeava e as circunstâncias que viviam. Na sua primeira temporada, Glee lutou contra o bullying e a sua maior inimiga, a tirânica treinadora das cheerleaders, Sue Sylvester, através do seu sincero gosto pela actuação de músicas. Isto não durou muito. A segunda temporada focou-se mais em Kurt Hummel, transformando esta personagem de um gay a viver um conflito interior, mas igualmente desafiador das regras impostas nos corredores do liceu, numa figura quase crística, cujo sofrimento afecto-nos a todos. De repente, a série passou a ser um local onde os oprimidos podiam chorar, receber abraços e dar lições de humildade a todos aqueles que os atormentavam.
Para todos aqueles que ainda se conseguiam lembrar da qualidade que a primeira temporada apresentou, o adeus de duas horas foi um recordar de todas as razões que nos fizeram apaixonar por Glee. Passado num lugar mágico, onde o Liceu de McKinley é agora uma escola de artes performativas, com Schuester a ocupar o lugar de director. A sua resposta a esta promoção veio na forma de uma fraca serenata para antigos e novos alunos com a canção “Teach Your Children”, dos Crosby, Stills, Nash & Young, que teve direito a pelo menos 100 close-ups de Lea Michele, a insuportavelmente ambiciosa Rachel Berry, a chorar sem parar.
A segunda parte do episódio avança 5 anos no tempo, numa época em que todos os estudantes ganham Tony’s, ou estão a fazer tournées com Beyoncé. Sue Sylvester, agora a Vice-Presidente do presidente dos EUA, Jeb Bush, faz um discurso comovente sobre os antigos membros do clube Glee, ao dizer-lhes que “ver o mundo não como ele é, mas sim como deveria ser é uma das atitudes mais corajosas que alguém pode ter.”
Se os meus olhos não ficaram cheios de lágrimas, durante os excessos emocionais da segunda hora do episódio, foi tudo graças à viagem de emoções que a primeira hora me fez viver. Intitulada “2009”, foi uma viagem até aos dias pré-Clube Glee, quando os seus vários membros eram ignorados e invisíveis. Uma hora que termina com Will Schuester parado fora da sala de música, ouvindo as harmonias que se iam criando lá dentro. Quando ele segue o som que ouve, revemos o segmento final do episódio piloto. Os cinco membros originais, incluindo Cory Monteith, que faleceu em 2013, vítima de uma overdose, a cantar uma versão repleta de auto-tune de Don’t Stop Believing, dos Journey. Uma versão que me arrepiou em 2009, na primeira vez que a ouvi. Agora que a revi, em pelo 2015, contínua a ter o mesmo efeito que tinha antes.
Será Glee uma das mais importantes séries de televisão alguma vez transmitida? Honestamente, penso que sim. Foi uma série estranha, porque, mantendo a sinceridade, quem é que iria imaginar que um programa baseado em coreografias simples e versões Pop de grandes êxitos musicais iria conquistar o mundo todo?
Não acredito que seja algo que volte a acontecer tão depressa, mas o precedente já foi criado e quem sabe o que o futuro nos reserva. Para além disso, não é possível esquecer a contribuição mais importante que a série trouxe para a televisão actual: uma necessidade insaciável por diversidade. Não só criou intensionalmente personagens gay, com uma deficiência física, obesas e transsexuais, mas também escolhia, na maior parte dos casos, actores que, na vida real, eram exemplos dessas personagens. Estas escolhas não teriam tido a importância devida, se as personagens em questão não tivessem tido um correcto tratamento por parte do argumento. Kurt, Becky, Artie e Mercedes tiveram o mesmo grau de prioridade que Rachel, Quinn, Finn e Puck. As suas histórias foram importantes e tiveram direito ao mesmo tempo de antena que as suas personagens mais tradicionais.
O legado de Glee não pode ser comparado à escrita fenomenal de The Sopranos, nem será mencionado na mesma frase de elogios que Mad Men. No entanto, barreiras foram derrubadas e o rótulo a que muitas vezes a série é devotada não reflecte todo o escopo do seu significado para quem a acompanhou. Glee não se tratou de um programa sobre o mundo “como ele é”, mas sim sobre o mundo como “ele deveria ser” e, numa era em que a televisão é dominada por dramas negros e complexos, a importância de uma singela dramédia, com uma banda sonora que qualquer pessoa pode ouvir no carro e cantar, não deve ser ignorada. Bravo!