A vergonha de quem somos!

Estava à procura de um tema honesto e que desse os seus frutos. E quando digo frutos, nem estou a pensar em nada em específico. Mas escrever para os outros é isto mesmo. Dar algo em que pensar, fazer sentir alguma coisa e criar vontade em ter opinião. Em que ao ler, aparece aquela vozinha interior que tem alguma coisa para dizer. Mesmo que em surdina, e o autor nunca saberá.

Mas este conforto para quem escreve, que alguém leia e nem que seja por breves instantes, deu que pensar.

A vergonha de sermos nós próprios não se trata apenas daqueles pensamentos maus que temos sobre nós, ou até sobre pessoas de quem gostamos. Não são os pensamentos maus que reprimimos e nos repreendemos que nos fazem ter vergonha de nós próprios. Há todo um mundo de arrependimentos, do que ficou por dizer, e o mais grave, a memória do que pensámos sobre nós em determinados momentos ou circunstâncias.

Em Outubro de 2020 eu pesava mais 42kg. Sim, é verdade. Era quase mais uma pessoa.

No entanto, devo dizer-vos que era feliz, descomplexada, vestia o que queria, e evidentemente que sempre tive facilidade em ter roupas da moda. Foram anos a trabalhar em moda, a fazer o guarda-roupa para séries, filmes e videoclipes. E quando vos digo que não tinha complexos, é real. Muito. E a principal razão para essa realidade resume-se ao facto de desde sempre, desde que me lembro de mim como pessoa sempre estive acima do peso. Lembro-me de ser a mais alta e a mais pesada da turma desde os tempos da primária. Nem em bebé fui magra, ou pequena. Então, é como um amigo meu que é invisual uma vez me disse: “A diferença entre mim que já nasci cego e as pessoas que ficaram cegas, é que eu desde que nasci que não vejo, não sei o que estou a perder. Enquanto as pessoas que viram desde sempre e perdem a visão é quase impossível não ficarem revoltadas.”

E é neste ponto que quero chegar. A pessoa descomplexada, livre, e de bem consigo mesma era real. Tinha espelhos em casa e sabia o que era vestir um 44. E em tempos 46. Claro que sabia!

Mas mesmo assim, nunca conheceu outra realidade e no fundo era isso que sustentava a sua base para ser feliz.

Aos 28 anos, por questões de saúde engordei os derradeiros 15/20kg fatais. Aqueles em que olhas para a comida e pensas, mais quilo, menos quilo. E assim continuei.

Mas mesmo assim, nunca conheceu outra realidade e no fundo era isso que sustentava a sua base para ser feliz.

Até ao dia em que em 8 meses perdi os tais 42kg. Já passou um ano desta minha transformação, chamemos-lhe assim. Hoje visto um 36. Um tamanho S. E sabem o que é que mudou?

Passei a ser complexada de uma forma que nunca tinha sido antes. Continuo a ter certos cuidados com a alimentação, mas nem noto, porque para dizer a verdade houve uma reeducação alimentar consciente. Em que me fui testando. Hoje não vivo sem exercício físico. Se no ano passado fiquei magra, e complexada com a flacidez. Este ano estou próxima do corpo que queria. E quanto mais olho, mais defeitos vejo. Quanto mais me dizem que estou bem, menos acredito.

E sabem o que é que mudou?

A minha percepção de mim própria e do mundo à minha volta. Sempre trabalhei proactivamente para a aceitação de todos. De todos os corpos, raças, sexualidade.

Desde que escrevo, quase todos os meus trabalhos publicados abordam questões de inclusão.

Era rodeada de pessoas que adoravam a minha “boa vibe” e ser “toda para a frente”. De estar de bem com a vida, e que era uma lição para muita gente o facto de não estar dentro dos padrões e ser gira e ter imensa pinta.

Fora estas mesmas pessoas que quando me viram vestida com um 36 me disseram:

“Estás magra, estás mesmo gira!”, ou “Pareces outra, estás tão bonita”, e ainda “tu estavas bem, não é que fosses feia, não senhor. Mas quer dizer, agora és magra. Vais passar a ver a vida de outra maneira”. Este último comentário foi dos que mais me marcou.

Em parte, por ser verdade.

Orgulho-me do meu percurso, da minha história. A minha vida feita de altos e baixos, zero privilégios. Onde nada me foi dado, tudo foi conquistado. Onde trabalhei para pagar os meus estudos, a minha carta de condução e o meu carro. Onde desde cedo compreendi dificuldades que colmatei sem nunca desistir dos meus sonhos. Num mundo em que sou analista de crédito e costume designer, num mundo em que escrevo para diferentes publicações e tenho um livro prestes a ser traduzido noutras línguas. Num mundo em que sofri e sofro de uma doença crónica, e num momento em que por ser artista no meio de uma pandemia fiquei sem trabalho. Num ano difícil em que peço o divórcio e começo do zero, tudo outra vez. Aceitei que não quero ser feliz pela metade, que mereço ser feliz por inteiro. Tudo o que sempre preguei, está de acordo com o que digo, escrevo e sou. No dia-a-dia. Desde as coisas simples, às mais complexas.

E dei por mim, mais do que uma vez complexada não pela pessoa que sou, mas pela pessoa que eu era. A minha personalidade forte não se deixa abalar com coisa pouca, mas fica a pensar.

Dei por mim, a desejar que pessoas que conheci depois de ter perdido peso nunca soubessem que um dia já tinha estado muito acima do peso.

Dei por mim, a ter vergonha de mostrar fotografias minhas de um passado muito próximo.

Dei por mim, a assumir que tinha perdido peso e dou por mim a olhar para as pessoas e a duvidar seriamente de que se me tivessem conhecido em 2020 não me teriam achado tão bonita, ou atraente.

As pessoas passaram a ser mais simpáticas e prestáveis. As roupas passaram a ficar quase todas bem, não é preciso fazer esforço para encontrar roupa para o meu actual tamanho.

Mas há medida que o número de pessoas que nos acham atraente aumenta, também aumenta a nossa desconfiança sobre a pessoa que temos à nossa frente.

E todos estes pensamentos sobre mim e sobre os outros, faz-me ter vergonha de mim mesma.

Não tenho vergonha da pele que tinha, ou da que tenho. No fundo, passei a não ter vergonha com o corpo para passar a ter vergonha da minha mente.

Que de vez em quando lá vai tendo maus pensamentos sobre si mesma quando se vê em fotografias.

Vergonha de pensar que está a tirar vantagem para passar à frente numa fila porque o segurança a acha gira. Com a certeza de que se fosse há dois anos atrás teria de ficar na fila mais tempo, porque o segurança não a deixava passar.

Mas isto nós nunca saberemos, nunca. Nem eu.

Mas a ideia de que o mundo me deu, era de que eu não era tão bonita como pensava. Eu não era tão especial como pensava. E só me dei conta disso quando as mesmas pessoas que me elogiavam, disseram de sua justiça quando me viram com peso a menos.

Resta-me acrescentar a esta partilha tão honesta e próxima de todos os que a estão a ler, serei eternamente defensora do mundo Queer. Em que sempre me senti aceite, por ser exactamente quem sou. Por nunca me sentir posta de parte, ou de lado por ser estranha, diferente ou ter uma curiosidade que chateia o mundo mais cinzento.

Todas as pessoas da comunidade LGBTQI+ foram as únicas ou das poucas que quando me reencontraram depois da minha transformação não fizeram aquele escândalo ou alarido com um “estás tão gira”, não. Não foi isso que aconteceu.

Quando me encontravam perguntavam se estava tudo bem, se tinha sido algum problema de saúde. Assim que eu respondia que não, diziam “Estás feliz? Isso é tudo o que importa. Tu és gira de qualquer maneira”. E isto sim, é aceitação.

Daquela que nem os mais próximos me conseguiram fazer sentir. Em que despoletaram em mim uma desconfiança da forma como os outros nos vêm, e em que circunstâncias é que realmente gostam de nós.

Agora que estou dentro de um padrão de beleza, as pessoas viram a cabeça, compreendi a verdadeira essência dos outros, e minha também. E são estas desconfianças, vergonha das fotografias antigas e pensamentos maus que tenho sobre mim e sobre quem costumava ser que sim, fazem com que tenha vergonha de ser eu própria.

Sermos nós próprios, maioria das vezes é um caminho solitário, cheio de ausências, de quedas, de desilusões, de muitos nãos e incertezas. Sermos nós próprios, que temos dificuldade em lidar com rebanhos, ou queremos muito fazer parte de um. Vergonha de quem somos, do que realmente queremos ao ponto de nem estando sozinhos temos coragem de o dizer em voz alta.

A vergonha de sermos nós próprios está condenada a ser um espelho do mundo em que decidimos viver.

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