Preso no Parlamento

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” Estendeu a mão para ir buscar água num copo por conta de seu apoquento. Vá, que isto de um copito de água acalma. Não sabem de nada estas gentes, calmaria não se dá com a água. São, estes dizeres, estratagemas para que não nos venha o sentido do vinho. Aqui, neste lugar, não ficava bem o tinto que não é isto igreja – ainda que o paralelismo possível seja tão evidente que choca pelo óbvio. Que diria o povo, abençoado sangue de Cristo que só o é no sítio certo! Aqui, fiquemo-nos pela água.

Agarrou-se à água, após ter terminado de escrever os últimos dizeres de uma história. Estava já nu, no cadeirão, desmazelado, moribundo. Aqui está nestes preparos, com a vista cansada, a sofrer a dor do desapego. Acabada a história tem dela de se desapegar para que outras à cabeça lhe venham. Desmame de escritor, o flagelo.

Doutor do lado não entende esta inquietação.

– Homem, componha-se! Despiu-se e aqui se deixou estar, nu, sem arredar pé, com essa tristeza verosímil. A mim ainda me dirão que o devia ter repreendido ou arrastado daqui para fora!

– É de alma, caro deputado.

– Deixou-o sua mulher?

– Elas todas.

– Se as enganou… e apanhado foi, que esperava? Agora vista-se, que dirá o povo!

– Não as enganei, mas acabei-as.

– Matou sua mulher? É isto caso de polícia e não deste parlamento!

– Deixe lá a autoridade que é isto por conta de palavras.

– Não é por mulheres? Oh, homem, vista-se lá!

– Até é… que não são as palavras outra coisa para mim senão mulheres. E aí bem que as engano, todas com todas.

– Isto é já caso de hospício!

– Já disse qualquer coisinha que prestasse. Deixe-me estar. Por algum motivo aqui me despi.

– Acredite que a guarda o tirará daqui para fora! Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que não é para isto que estuda um Doutor! Que virá nas manchetes?

– Não se apoquente, virá que foi preso um louco no parlamento!

– E já viu o bonito que isso será?

– Olhe que será! Estou-lhe eu a dizer! Que a isto não está o povo habituado e haverão de gostar de ver que daqui alguém sai preso. Não tema, caro Deputado, nem me defenderei alegando que meu único crime é o amor à arte. Dá para acreditar? Isto há com cada louco…

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