Voltei aos velhos tempos de solteiro numa noite de sexta-feira em que a Sofia saiu e eu fiquei em casa a deliciar-me com cinema na TV. Ao ver a programação, fiquei logo pelo primeiro – Star Movies – para ver Marinheiro de Água Doce, de Buster Keaton. É raro os canais por cabo passarem a magia do preto-e-branco e aproveitei para ver o clássico do Burlesco de que o António-Pedro Vasconcelos tanto gostava.
Outro filme no mesmo canal havia-me deixado a pulga atrás da orelha: um documentário de 2019 sobre Diego Armando Maradona.
Todas as gerações têm a sorte de acompanhar, testemunhar, viver os últimos tempos de alguma coisa. Com o mundo continuamente em mudança, assistimos sempre a algo que morre e algo que nasce. Num mundo anterior à internet e às redes sociais e ao futebol pago na TV, à TV por cabo e aos milhões a que a lei Bosman deu origem, houve uma altura em que o público invadia o campo para festejar as vitórias com a equipa, em que as conferências de imprensa eram feitas com os jornalistas e o público amontoado, em que estradas eram cortadas, very lights lançados na via pública, em protesto ou em festejo, em que os estádios não tinham cobertura nem cadeiras, em que o futebol era mais puro e podíamos vivê-lo em família nas noites de quarta e quinta na Europa e aos fins-de-semana por cá.
Comecei a ver futebol, este futebol, no final da década de oitenta e tive a sorte de assistir ao final dos anos de ouro da carreira de Maradona. Na altura, com 8 ou 9 anos, não sabia que o craque argentino já jogava (e vivia) atolado em cocaína. Foi um ídolo para mim naquela maravilhosa final a duas mãos da taça UEFA de 89 contra o Estugarda, 2-1 em Nápoles e 3-3 na Alemanha.
Contudo, recuemos no espaço e no tempo: ao documentário de sexta-feira à noite e ao bairro pobre do subúrbio de Buenos Aires, onde um jovem se vê a sustentar a família quando o jeito para a bola desponta e lhe oferecem um apartamento. As imagens em bruto atravessam todo o filme e esse realismo aproxima-nos de Maradona.
Lavem-nos, lavem-nos, lavem-nos com o fogo. Vesúvio, lava-os com o fogo!
Cântico num estádio italiano
Sem Maradona, o Diego nunca teria saído do bairro. A dualidade desta personalidade tão genial quanto destrutiva acompanhou toda a vida de El Pibe. Diego era humilde, trabalhador, ingénuo. Maradona era boémio, de excessos, controverso. Se em Barcelona, onde não foi feliz, os dois lados da sua personalidade já se manifestavam, em Nápoles, o clube onde Maradona jogou entre 84 e 91 e que ele revolucionou, explodiram.
Queria uma vivenda e deram-me um apartamento; queria um Ferrari e deram-me um Fiat. Foi assim que Maradona começou a transformação do Nápoles, clube do sul, pobre, na década de oitenta, onde o Calcio atraía a nata do desporto-rei, mas as rivalidades incendiavam os estádios. Os ultras e os cânticos racistas ou preconceituosos contra o sul dos porcos ou do nosso esgoto, coloriam os estádios que o Nápoles visitava.
Em casa, no San Paolo, os adeptos que na cidade suja dominada pela Camorra pouco mais tinham que os alegrasse, foram assistindo à ascensão do clube e de uma lenda: oitavo, terceiro e o título em 87, o primeiro da história do Nápoles e a explosão de orgulho dos pobres sujos do sul.
“Até os cães fogem. Vêm aí os napolitanos! Cheios de cólera, sofrem terramotos. Nem sabão sabem usar! Nápoles é merda, é peste! São a vergonha da Itália inteira. Napolitano, trabalha tu. Graças ao Maradona terás que dar o cu.“
1985, Cântico dos adeptos da Juventus
O filme mostra o conflito e a magia na perfeição. Nele vivemos de perto as contradições de um mundo demasiado confuso para os padrões de hoje. Mas essa espontaneidade e tempero desregrado eram o que permitia o despontar de génios como Maradona, artistas sem disciplina mas de coração. Hoje seria impossível com as estatísticas, a computação, ciência e toda a mecanização a que o futebol se vergou (Messi é um produto da Academia desde tenra idade).
E se o documentário nos mostra como Maradona nos apaixonava, também mostra porque o odiávamos.
México 86 e a música que me ficou no ouvido muito antes de ver futebol, nas últimas semanas que vivi na Marinha Grande. A Argentina de Bilardo contra a Inglaterra de Robson, a vingança das Malvinas, a mão de Deus e uma das maiores obras de arte de todos os tempos, dois golos e um jogo que, nas palavras do jornalista desportivo Daniel Arcucci, explica o mito de Maradona, porque o odeiam e adoram, batota e genialidade.
Em Nápoles foi Deus e Diabo, mas comecemos por Deus. Na euforia que se seguiu ao título de 87 (e que durou dois meses!), os ultras colocaram uma tarja no muro de um dos cemitérios da cidade Não sabem o que perderam.
Se Maradona sempre viveu os excessos que Itália lhe ofereceu, na Mafia personalizada pela família Giuliano, Diego soube criar magia e revolucionar um clube. Cláudia, a companheira de sempre e Cristiana, a aventura napolitana que lhe deu o primeiro filho (ilegítimo, nessa classificação tão brutal), formam mais dois pólos que confirmam a ambivalência desta vida tão rica em abusos e maravilhas.
“Lavem-se” [eram os porcos, os sujos]
Tarjas no Norte
Todos albergamos o sol e a sombra, mas temos também a sorte de não nos vermos expostos à voracidade dos media, do público, da rede. Maradona apaixonou o mundo com a sua arte e desiludiu-o, tornando-se numa das figuras mais odiadas em Itália. O título de 90 foi ganho sob grande pressão: viciado em Cocaína, no momento em que alcançou a glória na Europa diante do Estugarda, no ano anterior, El Pibe manifestara ao presidente do clube o desejo de sair. Ferlaino, ante a hipóteses de perder o homem que transformara a cidade e a sua vida, não lhe fez a vontade.
Depois da conquista do segundo Scudetto, o Campeonato do Mundo de Futebol jogava-se em Itália. O Itália 90 foi o Campeonato que me apresentou a magia das grandes competições de selecções, o primeiro que acompanhei e aquele que ficou gravado para sempre na memória de infância.
Itália, na sua forma apaixonada de viver, a máfia e a arte, a desordem de onde nascem algumas das mais belas obras da sétima arte (foi Mussolini quem criou a Cinecittà), formou o caldo perfeito para o Olimpo e a ruína de Maradona. No Itália 90, os adeptos italianos, mesmo os napolitanos que um mês antes o endeusavam, não lhe perdoaram a meia-final perdida precisamente no San Paolo!
No ano seguinte, um controlo anti-dopping positivo afastá-lo-ia dos relvados por um ano. Iniciara-se a queda de um dos melhores jogadores da História. Ciro Ferrara, napolitano, companheiro de Maradona no clube e jogador da selecção que perdeu a meia final diante do companheiro de equipa mostrou a dimensão da palavra Amizade no momento difícil para o argentino A minha opinião dele não mudou. Tenho a minha visão da figura pública de Maradona, do homem, de quando ele praticamente chegou a Itália. Conheço-o há imenso tempo, a minha visão dele não mudará, de todo, e não manchará a bela imagem que tenho do Diego.
“Viva, coléricos” “Nápoles, o esgoto da Itália”
Tarjas dos adeptos do Inter
O mundo em que Maradona e todos nós vivemos era outro, mais caótico, mais nervo e menos cérebro. E se para a vida em sociedade a realidade actual se tornou muito mais funcional, onde os ricos podem ter ficado mais ricos, mas os pobres ficaram menos pobres, onde o crime e a violência deixaram de estar controlados por grupos mafiosos ou indigentes, mas pelas autoridades, como consequência perdemos quase todos estes rasgos de prazer que nasciam no meio do caos.
Parece-nos hoje bonito evocar esta época, quase que a justificando por ter possibilitado o aparecimento de um vulcão como Maradona. Esquecemos o horror do mundo da droga e das execuções da Camorra ou outra Máfia qualquer. Porque estes personagens fascinam-nos tanto que quase nos levam a crer que aquele mundo é que era, que Aquilo é que era jogar futebol!
Maradona entrou em Nápoles aclamado por oitenta e cinco mil pessoas e saiu sozinho, nas palavras do próprio. Não é caso virgem, no futebol e na vida, passar-se de bestial a besta (e vice-versa). Não sou da geração do México 86, mas da do Itália 90. Vi jogar Maradona no crepúsculo da sua época áurea. A minha geração teve sorte. A sorte de aprender a amar um ser odioso. Talvez tenha sido essa a maior dádiva de El Pibe e que este filme expõe de uma forma crua embora não cruel: mostrar-nos que se ama apesar de e não apenas porque.