Não é novidade nenhuma a polémica que a vacina anti-Covid provoca. Desde reações eruptivas a comentários sarcásticos, o tema coloca pais contra filhos, maridos contra esposas, amigos contra amigos, parecendo criar um sem fim de divisão. Se a vacina parece vir resolver o surto que assomou o mundo nos últimos anos, vem também amplificar a linha que separa atentado aos direitos humanos e garantia de segurança da saúde pública.
Eu tive COVID no Verão passado e o meu certificado expira no final deste mês, a questão da vacina obviamente coloca-se. Nem é tanto se eu quereria ou não quereria tomar, até posso assumir que findo o prazo recebo a dose, a situação é o que tenho vindo a observar nos últimos meses. Como se pode garantir o respeito dos direitos humanos sem violar a saúde pública durante uma pandemia? Será que durante uma pandemia os direitos humanos são relegados para segundo plano por um bem maior? E será que honramos a nossa condição de humanos quando não respeitamos a integridade e liberdade de cada pessoa?
Estas várias questões têm-me ocorrido nos últimos tempos ao ver a forma como tratamos os que optam por não tomar vacina, atacando-os e marginalizando-os. Visto que essa marginalização está ligada a medidas decorrentes das preocupações em garantir a saúde pública, o que nos podemos questionar é se haveria uma forma de conciliar procedimentos que garantissem a saúde de todos, bem como as escolhas pessoais de cada um.
Acima de tudo, numa pandemia percebe-se a interligação que temos uns com os outros e como estamos intrínseca e indubitavelmente ligados. Subitamente o meu espaço e a minha liberdade estão mais expostos ao espaço e à liberdade dos outros. Será que a preservação da espécie a todo o custo justifica que cada ser seja desprovido de direitos básicos? A escolha que cada um pode fazer em relação à sua saúde é um direito pessoal ou colectivo?
O que é que me levaria a criticar ou atacar alguém que fez uma escolha diferente da minha senão o medo? Eu tenho medo! Todos temos medo. A situação é nova, é desconhecida. Onde é que está escrito que tomar a vacina é a garantia para passar por isto imune? As primeiras evidências apontam para tal, mas o que é que nos assegura que não haverá efeitos após algum tempo – tempo esse que não temos para análise, visto que se trata de uma pandemia? Porque é que esse medo é menos inválido do que o medo de morrer já? É quase um daqueles casos em que ou se vai da doença, ou se vai da cura. Então a grande questão não será tanto os meios para aplacar esse medo, neste caso a vacina, mas sim lidar diretamente com essa emoção. Já dizia o Roy Batty no Blade Runner «It is quite an experience to live in fear, isn’t it? That’s what it is to be a slave.»
O medo congela e coloca o ser humano em modo lutar ou fugir, ou seja, em stress permanente. Se esse stress não for apenas momentâneo contribui para a auto-destruição através da degeneração celular. As células não conseguem cumprir o seu papel de crescimento, reprodução e evolução se estiverem constantemente num ambiente corrosivo em que a energia está maioritariamente concentrada nos membros (modo lutar ou fugir) em vez de nos órgãos vitais.
Digamos que é como se vivêssemos na savana e tivéssemos visto um leão. Só que já o estamos a ver permanentemente há dois anos. Como podemos lidar com a evidência da existência do leão com serenidade? A vacina parece dar resposta a isso. Mas então, porquê esta obrigatoriedade em tomar e a necessidade de segmentação para quem não a tomou? Obviamente que se eu tomo fico seguro e se outro não toma não o fica, mas isso seria uma decisão da inteira responsabilidade de cada um, certo? Porque é que eu teria de ditar as suas escolhas? É quase como fumar: quem sou eu para dizer a alguém o que pode ou deve fazer? Naturalmente é o medo que provoca este tipo de regra e divisão. Neste caso, o medo da diferença («se eu tomei, os outros também têm de tomar») ou o medo do colapso do sistema («se os outros não tomarem, os hospitais vão rebentar»).
Se observarmos outros países vemos que as regras são mais no sentido de respeitar a decisão individual de cada um. Olhemos por exemplo a Noruega, onde vivi durante muitos anos, cuja a recomendação é a toma da vacina, mas em qualquer lugar é aceite ou o certificado ou um teste negativo, e espaços como supermercados nunca estiveram fechados, tendo, inclusivamente, sido aumentado o horário de funcionamento para que as pessoas tivessem uma janela temporal maior e, dessa forma, se evitasse a acumulação de gente. Ou a Austrália cujos sindicatos, nomeadamente na área de Queensland onde tenho bons amigos, estão a trabalhar para garantir o direito à escolha por parte dos trabalhadores, evitando assim a marginalização, aceitando e respeitando a liberdade de cada individuo.
Quando somos desprovidos de capacidade decisiva, somos destituídos do direito básico à vida, somos despidos do livre arbítrio e da responsabilidade que a liberdade traz: a capacidade de pensarmos pela nossa própria cabeça. Um dia será evidente para a Humanidade que a violência mental é tão perigosa e destrutiva como a violência física. Se tratarmos as pessoas como seres incapazes, é esse o resultado das suas ações.
Talvez a melhor forma de lidar com a vacina anti-Covid seja contemplar a extraordinária capacidade que o corpo humano tem de se adaptar e de se reequilibrar sob qualquer circunstância. Se concentrarmos a nossa atenção na regeneração inerente aos processos do corpo, conseguimos relaxar quer num cenário de toma de vacina obrigatória, quer num cenário de escolha livre em que há quem escolha não receber o remédio.
Quando focamos a nossa atenção em confiar na vida, sentimos paz, independentemente das ações à nossa volta. Isso obviamente não retira a nossa quota parte de responsabilidade e o poder decisivo que temos em exercer o nosso livre arbítrio, mas ajuda-nos a compreender (e repensar) o espectro de palavras como liberdade, sociedade, respeito, saúde e diversidade.
May your choices reflect your hopes, not your fears.
– Nelson Mandela