Ouvir a própria voz

Em miúdas, eu e a Margarida, num estúdio improvisado no meu quarto, munidas do gravador de cassetes que usávamos nos spectruns, divertíamo-nos a fazer programas de rádio. Recordo em particular um desses maravilhosos programas, que facilmente poderíamos vender a um qualquer grupo radiofónico: eu era a locutora em estúdio e a Margarida fazia uma reportagem no campo, em pleno descamisar do milho.

Ela retratava a cena do grupo de raparigas e rapazes que se juntavam para retirarem as folhas da maçaroca do milho, falando com um ou outro, (onde eu entrava com voz diferenciada). Relatavam-se assim as tradições do prémio atribuído a quem encontrasse uma maçaroca vermelha, habitualmente um beijo da rapariga/rapaz que mais agradasse ao vencedor/a. Com alguma música pelo meio e estava o programa estruturado.  Depois, ouvíamo-nos, na altura surpresas com a voz que saía do gravador, muito diferente daquela que ouvíamos na nossa cabeça. E do espanto ao entendimento científico distou muito pouco. A nossa voz, quando falamos, é recepcionada pelos nossos ouvidos por duas vias, a externa, pelo ar, e a interna, que ressoa nos ossos da face, gerando um mix. A voz dos outros, ou a voz que fica gravada, é a que vem por uma via única, o externo.

Mais tarde tive outras oportunidades de ouvir a minha voz de modo mais formal. Uns 2 anos antes de acabar o curso na universidade, trabalhei em part-time no call-center do Grupo Millennium, basicamente a vender seguros e produtos bancários. A formação inicial incluía, para além dos procedimentos técnicos, a audição das nossas vozes em pleno desempenho, gravadas e trazidas à turma para apreciação pelos outros e pelos próprios. Tom de voz, clareza de frases, dicção. E aí tive clara consciência da minha voz, que aprecio muito mais do que aquela que oiço diariamente.

Anos mais tarde, fui à rádio, como convidada, para falar do meu percurso na escrita. Posso dizer-vos que adorei, os fones postos, o microfone, a mesa de som ali ao meu lado, a conversa que fluiu solta, passados os primeiros segundos de hesitação e nervosismo. Gosto mesmo de falar e mais ainda de escrever, não sei se se nota…

Mas foi com os podcasts da Repórter Sombra, incluídos na comemoração do 10º aniversário, que a percepção foi maior e mais abrangente. Falo da minha própria entrevista, e quando a ouvi, não atentei tanto no tom de voz, que já vou conhecendo, mas antes nos erros de linguagem oral e as bengalas da comunicação que usei. E de facto, penso que só desta forma se pode perceber a forma como falamos. Claro que cada um de nós sabe que palavras usa recorrentemente ou que expressões repete, ou mesmo se usa espaços entre as palavras, decorrentes de estar a pensar e a falar em simultâneo. Mas escapa-nos muita coisa, que só ouvindo-nos poderemos detectar, sem estarmos preocupados em alinhar ideias. Eu, por exemplo, descobri eh pá… que digo muitos eh pá, e não, não falo do Epá, aquele gelado da pastilha elástica no fim do copinho.

Quando escrevemos, podemos rectificar, alterar, reduzir, ampliar o que dizemos. No meu caso, sempre no computador, que tenho letra de médica, embora não o seja. Considero o acto de passar a limpo uma perda de tempo, e muitas vezes em risco de não ser o definitivo, que a cada vez que leio o texto apresenta algo que não me agrada ou que pode ser melhorado. No entanto, quando falamos, não há volta a dar, já aconteceu. Isto não quer dizer que vivamos numa permanente auditoria ao que dizemos, sob pena de perdermos a nossa espontaneidade, ou de desperdiçarmos o ambiente envolvente, enquanto nos punimos mentalmente por ter usado mais uma bengala… eh pá, não.

Contudo, podemos melhor a forma como falamos. A construção gramatical é o mais importante, a boa dicção é necessária, mas outras questões podem ser analisadas, sem perda das marcas de oralidade, por norma mais fluidas que a escrita.

O uso das bengalas ou bordões, por exemplo. São palavras descartáveis na frase, ditas frequentemente, sem qualquer mais-valia, quase sempre de forma inconsciente. Há inúmeros exemplos, sendo estes alguns dos mais usuais: o célebre eh pá ou , pronto ou prontos (pior ainda), portanto, pois, hum ou o terrível tipo, associado aos mais jovens. Ultimamente tenho-me apercebido duma nova expressão: ai, não aguento!, o que me dá uma imensa vontade de rir. Estas palavras, sem qualquer sentido ou justificação, perturbam muita vez a passagem de mensagem, um pouco como a língua dos Pês, lembram-se?  Este código infantil consistia em adicionar sílabas começadas com P a que se juntava a terminação de cada uma das sílabas da palavra. Algo como “Fui ver o cavalo” seria “Fuipuiverperopocapavapalopo”. Confuso, certo?  Se o nosso interlocutor as usa, além de nos distrair ou mesmo irritar, estamos permanentemente em esforço de nos focarmos nas palavras a que devemos dar atenção. Cansativo, no mínimo.

Em conclusão, prometo que vou vigiar a minha oralidade. Talvez assim algum grupo radiofónico permita a realização dos sonhos de duas meninas…

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