O realizador Alfonso Cuarón descreve em cores monocromáticas a sua infância. Um retrato muito intimista sobre o seu passado e uma forte homenagem às mulheres da sua vida.
“Roma” pode ser mesmo o primeiro filme da plataforma digital Netflix a conseguir um Óscar. Apesar de ainda não existir divulgação dos nomeados, muito provavelmente este filme estará na lista. Já recebeu os Globos de Ouros na categorias de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Realizador e Melhor Argumento, por isso, os Óscares é um sonho igualmente possível. Apesar de aparentar, o título não se refere à capital italiana, mas sim a Roma, um local na cidade do México. Com contornos auto-biográficos, Cuarón baseou-se na sua própria infância para a construção deste filme. Uma obra-prima simplista e poética.
A personagem principal é Cleo (Yalitza Aparicio) uma empregada doméstica, que serve uma família da classe média. Trabalha para a Sra. Sofia (Marina de Tavira) e Sr. Antonio (Fernando Grediaga), um casal com quatro filhos. Cleo é uma mera espectadora do desgaste evidente do matrimónio dos seus patrões. Uma personagem que segundo os padrões habituais do cinema é secundária, mas neste filme merece uma relevo mais aprofundado. De personalidade tímida e calada, Cleo faz o que lhe mandam sem expressar muito os seus sentimentos. Mesmo apesar da dor que sente, mantém a mesma cara pacífica. Contudo é bem acarinhada pela família. Não é só sobre a hierarquia social o plano de fundo do filme. Evidências sociais sobre o estado do país também são apresentadas. No início dos anos 70, a cidade do México apresentava uma situação social muito instável. Apesar da celebração do mundial de futebol, outros factores menos positivos eram notícia. O massacre de Corpus Christi que resultou na morte de 120 pessoas, apresenta o clima de insegurança e rebeldia que marcou a década. Um movimento que também foi retratado no filme de forma geral, mas persuasiva para a continuação do desenvolvimento das personagens.
As cenas do quotidiano abordadas neste filme, são do mais normal possível. Não acontece nada de extraordinário e não existem pessoas especiais. A vida vai acontecendo de forma gradual e só temos que respeitar isso. Face a várias opções, escolhemos a decisão conforme a melhor maneira possível. O que se destaca verdadeiramente neste filme é a cinematografia de Cuarón. O preto e branco da tela, a língua espanhola e algumas das cenas filmadas a 180º graus, onde tudo se encaixa devidamente. Além do fantástico trabalho de realização, Alfonso Cuarón, foi ainda o argumentista e responsável pela fotografia desta obra. Um quase de “faz-tudo” necessário já que a mesma foi baseada na sua própria experiência. A profundidade humana emocional apresentada, é o fruto do toque sensível nas filmagens. O carinho de cada sequência é notório durante toda a longa-metragem. Uma excelente trabalho estético, brilhante, onde a falta de cor não é um pretexto para não conhecermos”Roma”.
No elenco destaca-se Yalitza Aparicio, uma professora pré-escolar na vida real, que não tinha experiência na representação, mas escolhida propositadamente pelo realizador. Para a sua personagem Cleo, precisavam mesmo assim de alguém, acanhado, face aquele novo mundo. A jovem mexicana conseguiu destacar-se pela positiva neste desafio.
Outra forte característica de Cuarón neste filme é o facto do mesmo ser dedicado às mulheres que marcaram a sua vida. A sua base de inspiração foi Libo, a mulher que o educou. A força feminina é um dos motes principais do filme. “We are alone. No matter what they tell you, we women are always alone“, assim evidencia a Sra. Sofia a Cleo. Ambas sentem-se fragilizadas pela forma como foram tratadas pelos homens, mas mesmo assim conseguem força de vontade para continuarem.
Concluindo, “Roma” discretamente tornou-se numa obra-prima, um clássico que irá continuar para as gerações futuras. Esta é a prova que o cinema estrangeiro também consegue ser muito bom, e não apenas o norte-americano. Devemos ouvir outras línguas e conhecer outras culturas.