O dia estava cinzento assim como a mente. Tudo se tinha ido, evaporado como um fumo que se deixava de ver e se perdia na linha do horizonte. Tanto que tinha acontecido e agora restava-lhe a memória dos gloriosos dias em que o mar lhe dava luta.
Tinha sido novo, bem entroncado e cheio de genica, aquela dos anos verdes em que tudo ainda é possível e nem o impossível poderia travar o desejo. Um corpo com tanto espaço para ter as marcas de tudo e os pequenos segredos que a vida lhe iria, com toda a certeza, proporcionar.
O mar. A água que fluía e que jamais acabava. Era a evasão que se permitia e onde encontrou o sustento. Primeiro era o lazer que chamava, com voz doce e pueril, depois era o vício que tinha ficado bem vincado e que se entranhava em cada poro. Era um tal apelo que só podia ser atendido.
Um dia, como qualquer outro, estava a de volta das redes e viu-a passar. Cabelos soltos e enrolados pelo vento, executavam uma dança curiosa que lhe tapava o rosto. Na mão esquerda repousavam os sapatos e as marcas dos pés emolduravam a areia por onde tinha pisado.
Sentiu o seu cheio e por momentos esqueceu o que estava a fazer. Quem seria? Nunca a tinha visto por aquelas paragens. Ela continuou o caminho e ele perdeu a agulha, a linha e o tino. Distraiu-se. Não era hábito. Recomeçou o trabalho.
Quando o barco estava pronto para zarpar empurrou-o até à água. Os braços fortes eram os companheiros perfeitos e fiéis. Os pés já sentiam o frio e húmido da água quando ela voltou a passar. Reparou nele. Sorriu-lhe. Colocou a mão sobre os olhos e viu todo o esplendor do mar.
O coração ficou estranho. Batia tão forte que se assustou. Que era aquilo? A mão escorregou-lhe e o barco fugiu. Sentiu um peso e virou-se. Era ela que o fitava com intensidade. A praia estava deserta e ouvia-se o som das ondas a desmaiar no areal.
Subitamente o silêncio ficou estranho. Olharam um para o outro numa espécie de bailado que rodopiava nos olhos dos dois. O sorriso dela continuava intacto e o coração dele parecia querer saltar do peito. Que absurdo…
Ela aproximou-se e estendeu-lhe a mão. Tocou-a e o choque que sentiu percorreu todo o seu corpo, aquele que era robusto e bem musculado. Seria uma sereia que o enfeitiçava e o queria arrastar para um mundo só seu?
Lembrava-se de ouvir falar de lendas e histórias de marinheiros que se perdiam de amores por seres mágicos e únicos. Nunca lhe contaram o que acontecia depois. No entanto, ele não sentiu medo. Somente fascínio e uma tremenda e inexplicável atracção.
Então, ela surgiu como uma luz radiosa e quente que o envolvia e acalmava. Não conseguiu pronunciar uma só palavra, mas o que tinham para dizer dispensava-as. Havia uma forte ligação telepática e tinha de ser atendida.
Amaram-se ali, perante a solidão da praia e com o barulho das ondas como fundo. Devoraram-se de beijos, de carícias, de suspiros e de toques sensuais e profundos. Eram parte um do outro e o resto do mundo tinha desaparecido.
Anoiteceu. Estavam de mãos dadas vislumbrando a chegada das estrelas. A noite chegava leve e parceira dos que se sabiam afoitar nas artes do amor. Era deles e apenas para eles.
Seria aquilo o amor? O sentimento que baralha a cabeça e faz desobedecer ao corpo? Nem um som humano persistia ali. As gaivotas faziam o seu baliado noturno e nada mais se poderia desejar.
Durante três dias o barco serviu-lhes de abrigo rudimentar. O Verão há muito se tinha ido e a praia era dos que lá buscavam o seu sustento. Eles alimentavam-se de amor e do que as redes conseguiam apanhar. Bastava-lhes.
Ao terceiro dia ela olhou para ele e a intensidade do amor feito foi tão grande que o sol se sentiu a explodir. Os braços fortes dele seguravam-lhe o frágil corpo que desmaiava em ondas de prazer. De mãos unidas e corações poderosos, morriam para se ressuscitarem com mais vigor.
Ela levantou-se, abriu a mala e retirou um livro. Estava escrito com palavras que ele não conhecia. Tinha a imagem dum gato e duma gaivota. Intrigou-o. Quis perguntar-lhe, mas não conhecia a sua voz clara nem que língua falava. Trocavam somente uns sentidos gemidos que abafavam o ar.
Viu-a desparecer até ficar apenas um ponto no horizonte. Teria sido real? Suspirou e as lágrimas caíram na areia. Foram tantas que fizeram um lago. Sentiu uma dor no peito e percebeu, naquele preciso momento, que nunca mais a iria ver.
Fez da pesca a sua faina em alto mar, onde podia gritar que tinha saudades dela, que a amava e que sabia que ela era real. Nunca mais soube amar com aquela intensidade, nunca mais se quis ligar a ninguém, nunca mais perdeu a sua memória.
Um dia encontrou o livro com a imagem que tinha visto no livro dela. Era dum escritor chamado Luís Sepúlveda e contava a história dum gato que tinha ensinado uma gaivota a voar. Ditosa era o seu nome. Percebeu quem ele era. A Ditosa voou, mas ele nunca mais levantou vela. Chorou lágrimas de felicidade.
Já na velhice decidiu comprar um barco e deixar a sua casa. Podia ir para todos os locais. Eram as suas asas, aquelas que uma incrível mulher misteriosa lhe tinha oferecido. Viajou pelo mundo. Buscava-a, mas era apenas uma miragem.
Aportou na praia deles e não mais quis dali sair. Deu o nome de “Recordação” ao barco, às suas asas, como uma homenagem a quem lhe ensinou a viver. Escreveu um diário onde ela estava sempre presente. Todos os dias. Ela, a que não tinha nome.
Morreu sozinho. Foi encontrado no seu recanto, com um sorriso de felicidade no rosto. Estava abraçado a um livro. A seu lado, no diário tinha escrito: “Se ao menos todos soubessem o que é o amor verdadeiro, a vida seria bem mais simples. Fui um rei por três dias e a minha rainha ofereceu-me o reino”.
Deixaram ficar o barco onde estava. Um amor daqueles não morre na praia nem em lado algum. Deve ser bem-ensinado e repartido para que todos entendam que o saber sentir e o saber amar é o melhor tempero da vida.