Chego a casa no fim de um dia, sentindo-me um polvo a tentar agarrar tudo sem deixar cair, a mala, a lancheira, o casaco, o chapéu de chuva e as chaves, sobretudo as chaves. Meto a chave à porta, rodo com a agilidade que a sobrecarga permite, o canhão denuncia-me com o barulho metálico. Entro em casa, já vou tendo tempo de pousar a tralha toda no móvel da entrada, porque tu já estás um bocadinho surda, não é?
Se dantes vinhas logo a correr, assim que ouvias o carro na rua ou a fechadura a rodar, posicionando-te mesmo mesmo atrás da porta pronta a lançares-te sobre mim, hoje o teu ritmo é outro. E quando não apareces, eu faço questão de dar sinal, acendendo a luz ou fazendo barulho, e lá vens tu, minha Rita–bonita-bacalhau–batata-frita, a tamborilar as patinhas no soalho flutuante. E agora que já estamos juntas, danças e uivas, dás-te às festas, numa alegria esfuziante. Eu já te disse que tens que ter cuidado com o ruído, o que dirão os vizinhos? O que vale já todos nos conhecem, não é minha pimpolha? Sim, já sei, prestas serviço de manter os ladrões à distância.
Hoje venho um pouco cansada, é um facto. Obrigada por perguntares. E mais que cansada, irritada. Notaste as olheiras, foi? Não tens noção do que é que o meu editor me pediu! Aquele homem às vezes sai-se com cada uma, olha, o homem não existe. Ouve lá isto: pediu que eu fizesse um texto sobre as conversas que tenho contigo. Isto há cada maluco! Sim, sim, esse teu olhar de espanto deve ser o mesmo que eu fiz! Vou lá agora expor assim a minha privacidade desta forma! Estás a ver do que as pessoas são capazes para angariar mais leitores e artigos mais lidos? Obrigar-me a expor-me nesta nossa intimidade? Não acho normal! Não acho mesmo nada normal!
Até porque eu não falo contigo, não sei de onde é que as pessoas ( malucas, com certeza), tiram essa ideia estapafúrdia de que falo com os animais. Não falo. Nunca falei, e Deus me guarde, nunca falarei. Sou lá eu capaz de tal. Que vergonha! Que embaraço!
Eu não falo, converso, o que pressupõe que tu também falas. Mas isso eles não entendem, presos a preconceitos que lhes toldam o pensamento. É que nem o teu irmão humano nos compreende, lembras-te quando ele perguntou a que preço eram as consultas da Sofia, a nossa amiga psicóloga, a ver se me podia pagar uma consulta ou outra para tratar-me das vozes na minha cabeça? Sim, dizes bem, aqui aplica-se perfeitamente a frase do Nietzche: E aqueles que foram vistos a dançar, foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música. Folgo em ver que tens aproveitado bem o tempo da minha ausência para leres qualquer coisa. Fico contente, se bem que às vezes podias ser um pouco menos dondoca e ires adiantando o jantar ou apanhando a roupa do estendal! Fazes-te sempre de desentendida, e dizes sempre o mesmo: estive a trabalhar de segurança todo o dia. Pois claro, então não é? Sei…
Enfim, não sabem o que perdem. Eu oiço-te perfeitamente, nunca me deixas sem resposta, com esses olhos eloquentes, essa cauda expressiva. E também com esse ladrar que varia de tom como um adolescente em mudança de voz, entre o timbre mimo de quando chego a casa e o ladrar grosso de quando reclamas com os cães que ousam explorar os teus domínios, leia-se até onde a vista e o faro alcançam da varanda. Para bom entendedor…sabem lá eles, coitados.
Já te disse que as pessoas acham que falar com os animais é sinal de doença mental? Verdade, sim, minha bébé-cotinha! Olha, já vi coisas piores. A ignorância faz as pessoas agirem que nem umas tontas. Lembras-te daquele agro-beto com o jipe, a que resolveste fazer rasante e que desatou aos gritos porque terias feito xixi quando levantaste a perna para não caíres do passeio? Sim, sim, isso, foi na altura em que tiveste a síndroma vestibular e perdias o equilíbrio, isso mesmo. Já te estás a rir? Respondi-lhe bem, não foi? Que uma cadela não alça a perna para fazer xixi. Vê lá a tristeza que é chegar àquela idade sem conhecer a biologia, sem diferenciar um alçar de perna dum macho de um abaixamento duma fêmea. Coitadito, um triste. E a louca sou eu, diz-me lá, Rita- Catita?
Eu até percebo que aquela coisa da cat lady possa criar imagens estranhas e deprimentes de solidão e problemas mentais em quem vê a mulher a falar com o gato. Mas eu nem sou uma cat lady, quando muito uma dog lady, e não queiram comparar-te com um gato, por amor de deus. Se não sabem as diferenças, como o agro-beto, coitado, perguntem. A mim ou a ti, claro, que até tens mais tempo disponível para esclareceres as mentes confusas. Temos mesmo que falar sobre a forma como desperdiças tanto tempo a dormir ao sol dia fora enquanto eu vou trabalhar esforçadamente.
Deixa mas é vestir-te a capa para irmos à ruaaaa, enquanto te conto as novidades. Vou por já aqui uma toalha para te secar quando entrarmos, que isto hoje está agreste. Não vás tu sacudires-te toda ao entrar, como a vizinha ali do prédio da frente quando vê chegar fardado o polícia jeitoso do rés-do-chão. Não estou a acreditar que vem ali aquela maluca que fala contigo como se eu não existisse. Olá, Ritinha, ai que capinha da chuva tão bonita, estás um charme, onde é que a compraste? Mas ela achará mesmo que foste tu que foste às compras? Não sei o que se passa com esta gente, mas não acho que estejam muito saudáveis. Tu, por favor, avisa-me quando eu começar a fazer estas figurinhas na rua (em casa é outra coisa…). Abro excepção para o teu netinho, aquele cãozinho pequeno e saltitante que delira quando te vê, a avó-Rita. “ olha o netinho da Rita”, digo eu quando ele se aproxima, acho que com um rapaz… As pessoas são tão ridículas…
E agora enquanto te aqueço o franguinho no micro-ondas, para misturar com a ração, lembro-me que a Margarida – vê lá, a nossa Margarida! – me olhou com estranheza quando o fiz em casa dela. O que estás a fazer, perguntou ela? Ora, não é óbvio? Para que serve um micro-ondas? Pois, acho que tens razão, os cães dela um dia destes fogem e aparecem-nos cá em casa a pedir para comer um saboroso franguinho, com o cheirinho e o sabor activados pelo calor. E aí talvez ela perceba. Surreal, fazem cada pergunta, estas pessoas…
E agora que o dia termina e te deitas na tua cama, vou tapar-te com a tua manta, dou-te um beijo e desejo-te bons sonhos, minha pipica. E tu adormeces, com um ligeiro ressonar que os teus quase 15 anos vão acusando, e olha, és a imagem da doçura. Por um breve instante, entristeço, sei que não ficarás comigo para sempre. Mas isto não te digo eu, ou digo mas muito baixinho, em desabafo, para que a tua surdez te proteja.
É por estas e por outras que lhe vou dizer que não. Artigos invasores da nossa privacidade, títulos sensacionalistas, não conte comigo. Eu acho que ele lançou o barro à parede, deixa cá ver se esta também faz parte dos maluquinhos. Deve estar à espera que entregue o ouro ao bandido com esta facilidade toda. Eu vou dizer-lhe que não, que não consigo tal proeza, que nunca tal coisa me passou pela cabeça, falar contigo ou com qualquer animal de ar simpático, não sou maluca, olha agora.
As pessoas até podem achar que sou louca, mas não vou nunca dar-lhes tal confirmação. O pior não é acharem, é terem a certeza, não é? Pois, exactamente! Ainda bem que concordas comigo, minha dinossaura-cotinha.
Fotografia de Rita por Le Terrier Studio
Maravilhoso…
Derreti ao ler este belo e tão poético monólogo…
Monólogo não, diálogo… 😉😘
Por que quem escuta e lê está presente e também “fala”… EU e ela também… A Rita-Catita…
Muitos parabéns e muito sucesso em todas as suas escritas, querida Amiga Sandra Ramos.
Um abracinho.
As palavras soam-me incapazes de fazer jus ao que eles, ela no caso, significa para mim. Inexprimível… Beijinhos