Os que vêm as coisas de forma diferente

“[…] the ones who see things differently […]”

Em 29 Junho de 2007 a Apple mudou o mundo. Pela mão e voz do seu fundador, Steve Jobs, a Apple criou o derradeirogadget que mudou a forma de interpretar o mundo de toda uma geração, bem como de todas as que se lhe seguiram. A Apple lançava aquilo que chamou iPhone, um nome pouco criativo para um objecto multifuncional que, segundo o seu criador (ou líder da equipa que o criou) agregava três funções importantes – era um telemóvel, um dispositivo para ouvir música e um browser para aceder à internet, tudo isso na palma da mão. Estavam criados os smartphones.

Há que esclarecer que o iPhone em si não introduzia nada de novo – os telemóveis já faziam chamadas sem fios, os iPods já davam para ouvir música na rua (até os walkman, criados pela Sony nos anos ‘70 já o faziam), e já havia portáteis que possibilitavam aceder à internet na rua. Mas não havia nada que, cabendo na palma da mão, agregasse todas estas coisas. Nem sequer o touchscreen era novidade. Já havia sido inventado há quase 20 anos.

O “truque” da coisa era o fenómeno de miniaturização e condensação de todas estas coisas num objecto que coubesse na palma da mão, ou no bolso de umas calças.

E para falar verdade, nem o próprio iPhone estava cristalizado nessa data. O “mockup” que Steve Jobs levou para a apresentação já tinha “crashado” uma série de vezes antes da apresentação, devido à incapacidade de manter activos os aplicativos e processos necessários para funcionar.

Porém, tudo correu bem, como era suposto. Como Steve Jobs tinha antevisto. E a Apple, pela sua mão, mudou mesmo o mundo.

Há quem diga que ele já sabia e que isso fazia parte da sua visão para si e para a sua empresa, e que essa confiança já estava inscrita no anúncio “Think Different” que ele havia feito questão de realizar nos anos ‘90 – com mão de ferro, controlando cada pequeno aspecto do processo, como sempre.

O anúncio em si é um hino à diferença, aos que introduzem a mudança no mundo, seguindo a visão de divulgação da Apple que Steve já havia introduzido nos anos ’80 quando lançou o Mac.

Traduz de uma forma simples a visão de Steve Jobs para a Apple e para si próprio – enaltece os que vêm para mudar o mundo, os desenquadrados, os que vêm as coisas de forma diferente, aqueles que, mesmo em contracorrente, estão decididos a mudar o mundo, mesmo que nem sequer o vejam. Os que desafiam o status-quo.

E é esta filosofia que toda a estrutura da Apple fazia questão de emular, que é em si, contracultura e contracorrente, e que, aparentemente, violava todos os conceitos básicos da gestão e do marketing.

A Apple não procurava o seu público, os seus clientes. A Apple fazia os seus produtos, exemplos físicos da filosofia da empresa, e divulgava-os abertamente como tal – símbolos de contracorrente, e acreditava que o seu público apareceria. E apareceu, e em números tão grandes que os papéis se inverteram – A Apple passou a ser o standard do mercado, e a sua concorrência os que procuravam combater a hegemonia. A Apple passou a simbolizar o status-quo, mesmo que não o fosse.

Entenda-se que, apesar disto, na realidade as outras marcas detinham ¾ do mercado de venda de smartphones, mas era a Apple que marcava o compasso da evolução. Era a Apple que decidia aquilo que iria estar em voga no ano seguinte. Era a Apple que decidia ou criava a nova característica que todos os smartphones teriam de ter no ano seguinte. E os outros adaptavam-se, ou desapareciam.

E isto tudo baseado na visão de Steve Jobs para a Apple – uma empresa cuja filosofia transcendia o criar, fabricar e vender isto ou aquilo. A empresa emulava a filosofia hippie dos anos ’70, misturando a vontade irrevogável de estar na vanguarda de tudo, de transcender com a devida espectacularidade o standard do mercado, e de traçar o caminho em direcção ao futuro. E fazia-o através de um controlo férreo de todos os aspectos do processo, e até o próprio dispositivo em si. A Apple era uma empresa de paradoxos, emulando a liberdade e aceitação da diferença, e não dando espaço para a individualidade dos funcionários, nem dos seus clientes.

Na realidade, esta paradoxalidade reflectia também o próprio Steve Jobs – um maníaco do controlo, um homem muito pouco empático, que fazia questão de impor a sua visão, humilhando os outros, se preciso fosse, para obter aquilo que queria. E isto fazia parte da sua forma de promover a libertação do status-quo, de abraçar a diferença da genialidade, de criar um mundo mais aberto e ambicioso por melhorar, por avançar em direcção a um futuro melhor.

A sua visão do mundo era de tal forma cristalina que ele poucas dúvidas tinha sobre o percurso – fosse dele ou da Apple, que acredito, na sua mente fosse uma e a mesma coisa.

Steve Jobs, tendo fundado a Apple com Steve Wozniak, sofreu na pele as “dores de crescimento” da sua criação. Obrigado a ceder o controlo executivo dela, viu-se depois empurrado para fora da Apple, deixando a direcção criativa por divergência de visões – a sua visão e intenção de criar e vender apenas dispositivos de excelência, verdadeiramente inovadores, investindo apenas num leque restrito de opções conflituava com a visão dos executivos, que apenas implementavam as metodologias de gestão em voga, procurando maximizar o leque de produtos, minimizando assim o risco do negócio. E Jobs pura e simplesmente não queria saber disto. A sua confiança em si e no que criava era de tal forma total e cega que era impossível estar errado.

Desempregado, enxotado da sua empresa e multimilionário, investiu todo o seu capital em duas empresas – a Next e a Pixar. Uma pretendia desenvolver a próxima geração de computadores e a outra filmes. Fiel a si mesmo, Jobs interligou as duas, e através de um investimento arriscado e empenho total, transformou-as de forma a ocuparem a vanguarda das respectivas indústrias, enquanto a Apple se afundava em si própria, incapaz de reflectir a filosofia que estava na sua génese.

Finalmente, em 1997 a Apple, carente de inovação, decide adquirir a Next, num processo que deixa em dúvida o que na realidade a Apple pretendia – a nova geração de computadores ou o visionário que a havia criado. O que é certo é que parte do contrato implicava que Jobs voltasse à Apple como CEO iNterino.

Os restantes 10 anos são passados em restruturação e introspecção profundas, silenciosa e penosamente acreditando numa filosofia que havia estado na génese da empresa, até chegar aquele célebre dia 29 de Junho de 2007 em que a Apple mudou o mundo.

[su_note note_color=”#f2edec” text_color=”#fffffff”]Nota de Autor: O tempo verbal utilizado é deliberadamente o passado – foi. E foi-o além dos factos históricos da Apple, referindo-se à filosofia desta mesmo quando esta se referia ao presente.[/su_note]

Desde 2012 e a morte de Steve Jobs, a Apple vê-se numa encruzilhada difícil – libertar-se ou não de um controlo férreo que a condiciona. Ser ou não ser uma empresa normal. Enquanto a sua história lhe dita que tal pode ditar a sua morte lenta, o status-quo empresarial dita-lhe que é o destino de todas as grandes empresas.

Já eu, que não sou accionista da Apple, nem seu CEO, limito-me a ouvir o “Think Different”, emocionar-me profundamente, não deixando de ouvir de seguida o “Golden Circle” do Simon Sinek, e pensar (e acreditar plenamente) que aqueles que são loucos o suficiente para acreditar que conseguem mudar o mundo são mesmo aqueles que o fazem.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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