A Escrita ou a Vida

Este ainda tinha forças, inimagináveis aliás, para recitar para si mesmo a oração dos agonizantes, para acompanhar a sua própria morte com palavras para celebrar a morte. Para a tornar imortal, pelo menos. Halbwachs nem para isso tinha força. Ou fraqueza, quem sabe? Já não tinha essa possibilidade, de qualquer forma. Ou esse desejo. A morte é, certamente, o esgotamento de qualquer desejo, inclusivamente o desejo de morrer. Só a partir da vida, do saber da vida, é que se pode ter o desejo de morrer. É, ainda, um reflexo de vida esse desejo mortífero.

Não sei se, comparado com qualquer obra de ficção, depois de ter lido A Escrita ou a Vida as obras de ficção me saberão a pouco, como avança Eduardo Prado Coelho no prefácio, não exactamente com estas palavras. Não obstante, o relato e desabafo de Jorge Semprún acerca da sua vida é certamente um texto marcante.

Jorge Semprún, membro do Partido Comunista Espanhol, foi preso aos vinte anos no campo de concentração alemão de Buchenwald, passando lá mais de um ano. Não é a sua vivência (essa palavra tão profunda) no campo que estas linhas descrevem, mas a força dessa fantástica e insondável experiência-limite que é a vida (e a morte).

Assim, no sobressalto ou do voltar a si, acontecia-nos suspeitar que a vida tinha sido apenas um sonho, por vezes agradável, desde o regresso de Buchenwald. Um sonho a que estas duas palavras [Krematorium, ausmachen! (“Crematório, apagar!”)] nos arrancavam de súbito, mergulhando-nos numa angústia estranha pela sua serenidade. Porque não era a realidade da morte, de súbito relembrada, que era angustiante. Era o sonho da vida, mesmo tranquilo, mesmo cheio de pequenas alegrias. A angústia era o facto de estar vivo, mesmo em sonhos.

Ainda que a leitura tenha oscilado, ao ritmo da escrita errática de Semprún, o feito deste homem foi ter conseguido tocar a fronteira da existência, a experiência da morte por que passou sem ter morrido, e a pujança com que agarrou a vida pelos colarinhos, a arte e as mulheres, o sabor de cada momento, sempre fugindo ao espectro do horror passado, tudo com palavras e construções tão perceptíveis, palpáveis, sentidas por quem lê, ainda que saibamos nunca sentir a infinitésima parte do que Semprún passou. Tanta vida só pode ser alcançada no papel por quem a viveu, por quem passou pelo Inferno e pelo Céu que nunca foi o que nós, que nos demoramos no Purgatório, julgamos ser lá em cima, no inalcançável lugar do desejo por acontecer.

Semprún tomou a decisão de abandonar a escrita por esta o arrastar para a morte, por trazer à superfície a experiência do holocausto – a escrita ou a vida? – e durante quase vinte anos, até publicar A Grande Viagem, foi fugindo das palavras. Sugere assim (chegando até a referi-lo, ainda que levemente, é certo) ser a escrita esse passeio de liberdade capaz de desbravar caminhos ao âmago de nós próprios, exercício supremo e assustador que nos leva a lugares que ignoramos ao arranhar as primeiras palavras; passados esquecidos, recalcamentos ou irrelevâncias que, trazidos para a brilho presente que só a palavra escrita descodifica, nos atira para o abismo do Eu. Não basta a memória, o pensamento ou até o sentir. Escrever, como a terapia, quebra as crostas que não ousamos sequer tocar nas conversas de todos os dias, como um cavalo sem freio à solta, esgravatando território inexplorado, que antes apenas o adivinhávamos no mapa que cartografa tudo o que guardamos. Semprún desconfiava… daí a opção: a escrita ou a vida? A escrita-catarse pode acordar demónios: o preço da liberdade.

Este livro foi para mim marcante por essa força vital que o atravessa, por percorrer, num frémito continuo, a poesia, e existência e o carnal, o gosto pela vida como um todo, como forma de escapar à morte que um dia encarou o autor de frente, que o atingiu sem o matar. Encontrar essa proximidade aos vinte anos e ter a possibilidade de voltar é uma dádiva para nós, eternos habitantes do Purgatório. Só que, como A Escrita ou a Vida nos mostra, não é um regresso assim tão apaziguador.

Devo confessar que nessa época Laurence acompanhava-me mais nas livrarias e Odile na cama. Não se tratou de uma escolha, calhou assim. Não tenho bem a certeza de ter preferido o contrário, apenas lamento não ter tido a ocasião de ir por vezes de uma livraria para a cama, ou vice-versa: mas a vida não é perfeita, como se sabe. Pode ser um caminho de perfeição, mas está longe de ser perfeita.

Jorge Semprún foi posteriormente expulso do Partido Comunista Espanhol, tornou-se escritor e argumentista, foi ministro da cultura no governo de Felipe González, viveu em Madrid e em Paris, em Buchenwald, junto à colina de Ettersberg, atrás da qual se encontrava a cidade de Weimar, e gozou a vida.

Nunca li Primo Levi, em quem adivinho escritos e uma vida mais pesados, sofridos (esteve em Auschwitz, e Semprún reconhece que a experiência concentracionária do escritor e químico italiano tenha sido muito mais marcante do que a sua própria estadia em Buchenwald), mas é revigorante e esperançoso ler, no concreto de uma vida, a possibilidade de dar a volta, ainda que esta nunca feche o círculo. É esse presente maravilhoso que este livro nos oferece.

Chegaria o dia, relativamente próximo [em 1992], em que não existiria mais nenhum sobrevivente de Buchenwald. Deixaria de haver uma memória imediata de Buchenwald: já ninguém saberia contar, com palavras vindas da memória carnal, e não de uma reconstituição teórica, o que terão sido a fome, o sono, a angústia, a presença ofuscante do Mal absoluto – na medida exacta em que este se encontra escondido dentro de cada um de nós, como liberdade possível. Ninguém teria mais, na lama e na mente, indelével, o cheiro a carne queimada dos fornos crematórios.

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