Ele chegava, de cidade em cidade, com malas cheias de sonhos. Não anunciava a sua vinda, mas todos pareciam saber quando ele chegava. Às vezes aparecia de cinco em cinco anos, outras de vinte em vinte. Dependia dos sonhos das pessoas, dos desejos que elas tivessem. Chamavam-lhe “O Traficante de Sonhos”. Quando chegava às cidades, instalava-se na pensão mais barata que encontrasse, e, ao anoitecer, encostava-se à porta da pensão com as suas malas. Só pedia, em troca, um objecto ou um sonho antigo.
A Maria Helena já tinha ouvido falar dele. Ela tinha dezanove anos, mas desde pequena que ouvia a avó contar as histórias mais fascinantes sobre o Traficante de Sonhos. Era um senhor que já aparecia na altura da bisavó da avó da Maria Helena, e parecia não envelhecer. Algumas das mulheres diziam que era o Diabo, e fechavam-se em casa ou nas Igrejas no dia em que ele chegava. Outras acreditavam ser um anjo que lhes tinha mudado as vidas em nome do Senhor. Mas a maioria das pessoas recebia-o com uma curiosidade inocente e pueril, acreditando que pudesse ser o filho, ou neto, ou colega do Traficante de Sonhos que aparecia na altura das suas bisavós, ou assumindo que as histórias antigas eram apenas um mito, uma invenção, um rumor espalhado para dar mais importância ao Traficante de Sonhos.
Nessa noite, a Maria Helena decidiu ir assistir ao espectáculo dele. Saiu pela janela do quarto – pois a mãe era uma das senhoras que acreditava nos poderes demoníacos daquela vinda – e correu até à pensão, seguindo as pessoas que, como ela, eram levadas pela ânimo e pela curiosidade. O Traficante de Sonhos não estava muito longe, e, como sempre, anunciava a sua presença apenas com a sua própria presença; sem gritos, sem publicidade. Discreto, sossegado, numa cara sem idade que tinha travado o tempo. Estava calado, lia um livro sem capa, aguardando que as pessoas se reunissem à volta dele e começassem a perguntar, a oferecer, a bater o pé impacientemente no chão. Nem sempre o Traficante de Sonhos atendia todos aqueles que o procuravam; talvez porque nem toda a gente tinha a sorte de poder trocar de sonhos, ou talvez os sonhos delas não tivessem ainda chegado até ele.
As pessoas esperaram quinze minutos. A primeira a falar foi a Otília, que não era conhecida pela paciência. “Trouxe a primeira roupinha do meu menino” estendeu um babygrow velho, que provavelmente tinha pertencido a outra pessoa antes de chegar ao filho da Otília “e quero trocar por riqueza”.
O Traficante de Sonhos olhou para ela, uns olhos escuros e vazios, e disse “Não tenho dinheiro. Posso trocar por esperança”.
A Otília olhou para ele, muda. Não sabia o que dizer, mas tinha sido a primeira a falar e sentiu-se na obrigação de aceitar. Estendeu o babygrow velho, e aceitou um pequeno cartão que ele lhe deu. A mão dele estava fria e seca, e ela arrepiou-se. Olhou para o cartão. “Uma raspadinha?” perguntou admirada, quase ofendida.
“Esperança. Pode ser que a raspes e ganhes muito dinheiro. Pode ser que a raspes e não tenha nada para te oferecer, que não fiques com mais do que já tens. Quem sabe? Mas até raspares, podes sonhar, podes imaginar. Podes ter esperança. E talvez consigas descobrir também as tuas prioridades.”
A Otília não entendeu grande coisa, mas de sonhos e esperança percebia, ai percebia, sim senhora. Olhou para a raspadinha e afastou-se, pensativa.
A segunda a ser atendida foi a Adelaide, que procurava paz. Todos sabiam que ela tinha descoberto as infidelidades do marido há pouco tempo, e ninguém estranhou que ela oferecesse ao Traficante de Sonhos o anel de noivado. Em troca, ele deu-lhe um livro de receitas japonesas. “Penso que vais achar as receitas de sashimi, com a precisão do corte e o seu toque cru, particularmente interessantes e calmantes. Quem sabe, se não te tornarás numa chef de renome?”
O Traficante de Sonhos olhou para a Maria Helena, directamente, como se estivesse a tentar reconhecê-la. Sorriu-lhe, e ela teve a impressão que os dentes dele estavam afiados. “E tu, o que trouxeste para mim?” perguntou-lhe, como se tivessem trocado de lugar.
Ela avançou entre as pessoas, e estendeu-lhe o seu diário. “Não é um velho sonho, mas espero que, ao dar-lho, se transforme em realidade.”
Ele sorriu, pareceu apreciar o atrevimento, a lírica do pedido da Maria Helena. Estendeu-lhe um maço de envelopes, papéis e cartas, e disse “Então a ti, dou-te fé.” Simplesmente isso. Fé. E a Maria Helena agradeceu, com um breve sorriso confuso. Não esperou mais para conhecer velhos sonhos dos vizinhos, nem saber dos novos que descobririam naquela noite. Foi para casa curiosa, a mexer nos papéis e a descobrir cartas, ansiosa, pronta a descobrir a fé e o amor prometidos.
Leu as cartas de amor, e sonhou com Ele. Namorou com aquelas cartas, desejou um futuro e soube que o seu destino seria esperar por ele. Sentia-se impaciente, mas decidida. Nos meses seguintes, sentiu-se mais observadora. Depois da visita do Traficante de Sonhos, nada pareceu mudar, mas ela não se deixou esmorecer. Sabia que coisas novas e mágicas iriam acontecer, e, embora não quisesse duvidar do que tinha sentido naquela noite, procurava, sem se aperceber, provas de que a sua fé teria um retorno, que era real.
O primeio pequeno milagre do Traficante de Sonhos foi o restaurante que a Adelaide abriu. Um restaurante com iguarias janponesas, algo nunca visto na terra, mas que foi um enorme sucesso. Até as televisões americanas iam entrevistá-la! Depois daquela noite, em que a Adelaide tinha conhecido o Traficante de Sonhos, o marido dela tinha desaparecido. Nunca mais ninguém o tinha visto, e, aparentemente, não se tinham preocupado muito. Houve quem disesse que o Traficante de Sonhos o teria levado como prisioneiro; outros, juravam a pés juntos que tinham visto a Adelaide a enterrar alguma coisa no pinhal, naquela noite. A Maria Helena não sabia o que tinha acontecido, mas quando ia ao restaurante dela e via as facas afiadas com que cortavam o peixe, tinha um arrepio e fazias as suas próprias suposições. Pensava que talvez o restaurante da Adelaide fosse, afinal, o segundo pequeno milagre do Traficante de Sonhos.
A Maria Helena também reparou que a Otília andava mais feliz, sentada em bancos de jardim com ar sonhador, a sua raspadinha na mão e o filho no colo. “Não vais raspar?” perguntava a Maria Helena. A Otília fazia que não com a cabeça e sorria, e beijava o cabelo do filho, e contava-lhe os seus planos mais absurdos. Alguns meses depois, quando raspasse, ficaria milionária. Mas para já bastava-lhe sonhar.
Por isso, quando a Maria Helena passou pelo café do Ti Rodrigo e viu que Ele – Ele, o das cartas, aquele que ela esperava – tinha finalmente chegado, sorriu e sentiu um aperto no coração. Mas não se admirou. Não, realmente não se admirou.