Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
Fernando Teixeira de Andrade
Ah! A zona de conforto. O nosso refúgio. Local no qual dominamos todas as variáveis ou pelo menos controlamos o caos, pois sabemos onde e como os imprevistos vão ocorrer. Onde a rotina se instala e a margem de evolução diminui.
Procuramos constantemente ambientes confortáveis, seja no trabalho, em casa, nos relacionamentos ou no círculo de amigos. Contudo, a segurança e a comodidade são na verdade inimigas da progressão.
Sempre admirei quem emigra. Tanto os que o fazem por vontade – pela ousadia -, tanto os que o fazem por necessidade – pela capacidade de superação envolvida. Não é fácil abandonar o que conhecemos. Praticar o desapego: material e emocional. Das nossas coisinhas, do nosso ambiente, dos nossos hábitos, das nossas pessoas. Rumar ao desconhecido, ao que nunca vimos e não controlamos ou sequer muitas vezes compreendemos. Exige muito de quem vai. Exige igual de quem fica.
No entanto, acredito que os que descobrem a sua zona de conforto, pessoal e intransmissível, e nunca mais de lá ousam sair ficam efectivamente à margem deles mesmos. São os que ficam presos a um lugar, a um trabalho, a um relacionamento, porque lhes é confortável, porque é seguro. Porque o desconhecido pode ser pior. Porque têm medo. Ou muitas vezes, infeliz e simplesmente, porque têm contas para pagar e família para sustentar. Arriscar neste último caso pode ser a diferença entre ter ou não o que comer e onde morar, mas, em todos os outros casos, não o fazer é morrer por dentro. É sobreviver… cumprir os dias. Um completo desperdício das nossas reais capacidades e um verdadeiro insulto a quem poderíamos ser.
Na verdade, águas paradas nunca fizeram bom marinheiro e o ser humano está feito para se transcender. Para se (re)descobrir e se (re)inventar constantemente. A vida toda. Senão adormece. Mesmo que de olhos abertos.
Expatriar-se é transcender-se. Uma de tantas formas de o fazer. E é tanto uma viagem externa como interna. Pois ao afastármo-nos do nosso “lar” encontramos novos lugares no Mundo, mas também novos lugares em Nós.
Ah! O nosso lar. O nosso refúgio. Local dos ruídos e cheiros familiares, da almofada que o sono não estranha, do “bra off, hair up”, dos defeitos que “já fazem parte da mobília”.
O nosso lar é, nas palavras de Rosa Lobato Faria:
“(…) onde se acende o lume e se partilha mesa
E onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra luz acesa quando se chega tarde,
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam:
Um estalar de madeiras, um ranger de degraus,
Um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros,
Como se eles estivessem ali desde o principio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete,
A mancha de humidade no tecto,
O pequeno defeito do caixilho,
São imutáveis como uma assinatura reconhecida.
Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam. “
Se como “lar” este poema – que tem tanto de beleza como de verdade – define lugares, não raras vezes o nosso lar não é onde vivemos, nem onde dormimos ou onde estamos, mas aqueles com os quais nos sentimos “em casa”. Depois há os mais abençoados que têm ambos.
Em todo o caso, às vezes, é preciso ir, mas melhor ainda é ter para onde (ou para quem) voltar.