O Sopro

Certa noite, uma voz falou comigo.

A memória é uma coisa estranha, que nos atraiçoa, um logro engenhoso, mas acho que foi mais ou menos isto que a voz me soprou ao ouvido: as melhores histórias de amor são as que não resultam.

Nas noites seguintes tentei perscrutar aquela voz. Tentei que voltasse e me explicasse o sentido daquela afirmação. Mas, com a mesma impetuosidade com que surgiu, a voz decidiu calar-se. Numa dessas noites passadas em claro, tentando desesperadamente um diálogo, a questão sobressaltou-me. Com um misto de temor e contentamento, perguntei-me: a loucura chega de uma vez ou vai chegando aos poucos?

Durante muito tempo não entendi o verdadeiro alcance daquelas palavras. Limitei-me, ao longo dos anos, a ser um homem que nunca existiu na sua plenitude. Tentei enganar-me, desculpar a pouca humanidade com que a vida me tratava, mas acabava sempre por sentir a dor da verdade. Nunca fui um indivíduo interessante, mas enfadonho também não. A esta distância, considero que talvez tenha sido o meu problema de flatulência constante a causa de não ter mais sucesso na vida e, principalmente, com as mulheres. Sempre fui o tipo mediano em tudo. Nem bom, nem mau. Nem bonito, nem feio. Nem era genial, nem comprometia. Podia ser considerado alguém invisível, pois a minha presença não fazia diferença e a minha ausência também não. Este é o resumo fiel da minha existência.

Foi quando me cansei de procurar a felicidade que as palavras daquela voz me fizeram sentido. É na imperfeição e no imprevisto que uma história amorosa tende a ser admirável. Em todas as outras, as perfeitas, as que se consideram como dando certo, carecem da verdadeira capacidade de nos levar aos limites do prazer. Foi aí que tudo mudou e eu, finalmente, encontrei o meu verdadeiro significado, aceitando-me, bem como às ocorrências inesperadas da vida.

Na altura, eu tinha 53 anos. Era um homem faminto pela vida e cansado dela ao mesmo tempo. Estar vivo doía, mas não o estar era um desperdício. No princípio, éramos apenas dois. Anna era uma mulher bonita. Um pouco redonda, mas bonita. Cheirava à delicadeza de uma pétala murcha e sofria de uma engraçada fragilidade psicológica. Arrastava-se langorosamente pela casa como se a vida esperasse por ela e, sempre que nos cruzávamos, disfarçava com um passo mais acelerado, voltando à sua costumeira moleza quando eu lhe saía da vista.

Quando conhecemos Karen, a minha relação com Anna estava na perfeição de ser a mais imperfeita possível. Tudo era bom: as discussões intermináveis, os insultos eram excitantes, as agressões deixavam-nos mais unidos do que nunca. Como em todas as perfeições, a rotina surge. Foi aí que Karen entrou nas nossas vidas, aperfeiçoando-as ainda mais. Ao contrário de Anna, Karen vinha munida de uma loucura e energia contagiantes. Fisicamente, era demasiado feia, com os ossos dos ombros muito salientes, uns dentes de coelho comicamente grandes.

Apesar disso, não tinha qualquer vergonha de mostrar o corpo e nunca a vi usar cuecas. Sou livre, nasci nua, costumava dizer.

Acho que nunca me apaixonei realmente por nenhuma delas, mas sempre gostei de mantê-las por perto. A possibilidade de desfrutar das suas vulnerabilidades excitava-me sobremaneira. Na verdade, era uma forma bonita de as amar, a minha forma.

Passados poucos dias, estávamos os três a viver juntos. O apartamento era pequeno, mas suficiente; a cama fora concebida apenas para duas pessoas, mas de forma milagrosa cabíamos os três. Determinámos que seria à vez: no primeiro dia em que dormimos juntos, eu fiquei no meio e, a partir daí, todos os dias alternaríamos. Esta regra durou apenas o tempo de um breve sopro. A ventosidade voltara a trair-me e, por determinação feminina, passei a dormir na ponta da cama, virado de costas para fora. A vida achava que podia continuar a divertir-se, fazendo metáforas à minha custa, mas eu era um homem renovado e confiante.

O quarto, o cenário perfeito para um conto de Raymond Carver, era um cubículo monocromático e insosso que mais parecia saído de uma ideia reles sobre design minimalista: uma cama de ferro branca e desengonçada, uma parede pálida. Aos pés da cama, um cadeirão rasgado nos braços, bege, a fugir para o desbotado. Estas tonalidades desmaiadas mantinham-se em praticamente todas as divisões da casa, mas era uma enorme satisfação contemplar a frigidez unicolor da casa quando contrastada com o calor com que dentro dela se vivia.

O universo parecia estar finalmente do meu lado e no dia de festejar os meus 54 anos decidiu presentear-me com Joacine, a vizinha da frente. O marido morrera há poucos meses. Sentia-se sozinha e atraída pelos sons que passavam das nossas paredes. Tinha 42 anos, buço proeminente e uma marreca fascinante. Foi uma excitação quando tocou à campainha e pediu para morar connosco.

Foram dias de enorme entusiasmo, o período mais feliz da minha vida: casa cheia, risos, discussões, agressões e muitas brincadeiras e escoriações. Por decisão democrática, de 3 contra 1, mudei-me definitivamente do quarto para o sofá branco-sujo da sala. Todas as noites adormecia no aconchego dos sopros de prazer vindos do quarto.

A minha flatulência manteve-se, bem como o meu desconhecimento e incompreensão das mulheres.

Uma felicidade imensa.

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