Recebi o convite por email. Quando olhei para as mensagens recebidas e vi o nome da Guida, sabia que só podia ser coisa boa. Abri-a de imediato, e ali estava ele: convite para a exposição Marcadores com história, no Teatro Independente de Oeiras.
Conheci a Guida Bruno há uns 2 anos, na livraria Gatafunho, Oeiras, enquanto ela animava o lançamento de um livro infantil de uma amiga comum (Sementes de Estrelas/Ana Cadima). E posso ter muitas dúvidas sobre o amor à primeira vista, mas sobre o encantamento não tenho nenhumas: dei por mim a olhar intensamente para aquele meio metro de gente, olho azul, cabelo branco, macacão vermelho aos quadrados. Lembro-me de pensar que ela poderia estar a falar da vida sexual das cebolas, que o meu interesse seria o mesmo. A Guida é uma comunicadora inata, e tudo nela fala, tudo nela tem vida, os olhos, a expressão, as mãos, a voz… sobretudo a voz, com que dinamiza qualquer texto.
Por isso, e conhecendo a Guida na sua hiperactividade cultural habitual, respondi de imediato, pensando que só não iria se a lua caísse do céu, expressão que uso para significar que quero muito. E fui.
Ao fundo do corredor, num hall prévio à sala de teatro, onde nesse dia se estreava também uma peça infantil – Diário de Pilar na Grécia, alinhavam 4 expositores por onde se distribuíam cerca de 6 centenas de marcadores. Acham muito? São apenas uma pequena amostra dos cerca de 72.000 que a Guida guarda, catalogados, não contando com outros que ainda esperam a devida classificação.
Um marcador de livro é muito mais do que um simples marcador de página. Seria muito redutor considerá-lo apenas um marco na leitura, por certo interrompida a espaços. Penso que tê-lo como parte da História não é, de todo, um exagero.
Os convidados vão chegando e o abraço é inevitável, ainda que de máscara, porque a Guida transborda afecto. É impossível não admirar e não embarcar no seu entusiasmo, quando nos aborda e explica este ou aquele em particular, sua origem ou história.
Pelo espaço há informações várias, que partilham com os visitantes o facto de haver conhecimento da existência de marcadores há pelo menos 400 anos. Refere-se que Christopher Barker, ao editar a primeira Bíblia inglesa em 1576, ofereceu à Rainha Elisabeth I um exemplar, com a particularidade de o personalizar com um marcador feito de tiras de seda.
As fitas de seda presas às lombadas, como é ainda hábito em alguns missais, surgiram apenas no séc. XVIII, mas só no séc. XIX o marcador de livros se tornou um artefacto comum, habitualmente feito de cartão com fitas de seda. O uso do cartão rígido como marcador surgiu em força por volta de 1880, muito usado como veículo de propaganda ideológica e publicidade.
A Guida vai legendando a exposição. Nascida em 1951, foi em 1958 que recebeu o seu primeiro marcador, uma pagela (imagem de um santo) que lhe foi dado no colégio onde estudava. Mas só mais tarde, quando já trabalhava na Biblioteca que foi abrir no Museu do Teatro, na década de 90, é que tudo se encarreirou para a colecção que existe hoje.
À época, uma jornalista belga abordou-a e, ao ver um amontoado de marcadores, terá perguntado se era uma colecção. Guida respondeu que, na altura, era apenas um ajuntamento, que quando se reformasse, logo teria tempo de proceder ao tratamento e classificação devidos. Este momento foi eternizado num artigo da revista Le Carnet, onde aparecem também imagens dos mesmos, inclusive um com o nome e morada da Guida. E para quem não conhece a teoria do efeito tsunami, este pequeno marcador permitiu que diversos coleccionadores lhe enviassem marcadores diversos, pedindo em troca alguns portugueses. Estava iniciada a permuta internacional. E eu continuo a encantar-me com o impacto de pequenos gestos que mudam toda uma história.
Pelas vitrines distribuem-se as diferentes classificações. Começando pelas mais antigas, que constam na publicação Bookmarks de A.W.Coysh e R.K.Henrywood, há um marcador de 1905 da St.Paul Cathedral, Londres, outro de 1930 relativo aos transportes franceses, uma fita contemporânea relativa a comemorações da família inglesa, bem como um marcador com flores secas colhidas na Terra Santa. Todos eles estão presentes nesta mostra.
Há ainda outros, que pela sua raridade e antiguidade devem também ser sublinhados: um marcador/abre-cartas inglês, de metal, 1887, e outro, muito raro, relativo à fábrica de meias norte-americana Shawknit Stocking.
Existem bastantes relacionados com a religião, com imagens de santos católicos ou referências a lugares sagrados e templos, bem como pinturas de inspiração muçulmana ou ortodoxa. O mundo está também representado, com desenhos relativos a monumentos ou artes do Chipre, Turquia, Japão, em materiais que vão desde o metal, à madeira ou à seda.
Há também os publicitários, de ideias políticas, como um do Che Guevara, ou comerciais, na sua maioria. Há um relativo ao surgimento dos esquentadores elétricos, que se suporta num slogan “água quente, cara contente”, ou da Comissão de Luminotécnica Portuguesa com letras decrescentes em tamanho, como se de um teste de visão se tratasse. Outros mais comuns, como da farinha Maizena ou dos jogos de cubos de madeira da Majora. Um manual da evolução da publicidade ali sob os nossos olhos, saibamos tirar deles proveito.
Há um muito engraçado, das bolachas Aliança, sendo até caricato. Aqui a Guida dá uma explicação adicional, que está escondida no verso e, portanto, inacessível: parece que dantes era comum comer uma bolachinha na cama (na altura ainda não haveria cáries, nem esquisitices com as migalhas, suponho…) e, portanto, era aconselhado a comer-se uma bolachinha para induzir o sono, duas se este tardasse. Outros tempos…. Ainda relativo à infância, há uma boneca muito castiça, que mais uma vez com a ajuda da Guida percebemos tratar-se dum marcador relativo ao Hospital das Bonecas, ainda hoje existente na Praça da Figueira em Lisboa.
Há muitos mais, dedicados especificamente a peças de teatro, actores, livros ou escritores, nacionais ou estrangeiros. Amélia Rey-Colaço, Vasco Santana, Amália, Alice Vieira, Gil Vicente, Shakespeare, Beckett, Dante, Virginia Wolf, abrilhantam a colecção.
A extensão dos mais de 600 marcadores induz-me, inevitavelmente, à falha na referência, pelo que o melhor será irem visitar esta exposição que está patente até dia 27 de março e apreenderem tudo isto e muito mais.
A espaços, tiro os olhos dos marcadores e olho para a Guida, enérgica senhora que aborda todos na sua inenarrável capacidade de nos fazer sentir em casa, e partilhar connosco histórias, que vão desde a sua infância, ao seu trabalho e obviamente à família que se fez presente.
Para quem queira conhecer o outro projecto da Guida, Mala d’estórias, basta aceder à sua página de Facebook.
Parece-me, contudo, que o ideal seria vê-la em plena contação de histórias, o que habitualmente acontece em bibliotecas e livrarias, mas para já estará no Teatro Independente de Oeiras, nos dias 12 de fevereiro e 12 de março, pelas 11:00.
Vão vê-la e depois digam-me se não existe mesmo encantamento ao primeiro olhar.