Áustria

Inicialmente era Moscovo, mas depois… os russos eram sinistros, desconfiavam de tudo e se fossemos apanhados sem visto com um pé dentro de uma das zonas reservadas seriamos interrogados, deportados, sodomizados, esquartejados, etc… decidimo-nos então pela Áustria, país na vanguarda da elite mundial, o segundo mais seguro do mundo, entalado entre a Nova Zelândia e… Portugal, na dianteira de campos tão distintos como o desenvolvimento, o ambiente ou as artes, ou não tivessem oferecido ao mundo um dos maiores contribuintes para o avanço tecnológico na Europa, pintor frustrado e vegetariano muito à frente do seu tempo: Adolf Hitler.

Acontece que o segundo país mais seguro do mundo colocou na lista negra o terceiro país mais seguro do mundo e começámos logo a construir o pequeno edifício de ansiedade, com a TAP sem nos passar cartão quanto a uma hipotética vontade de alterarmos os planos devido ao Covid. A única justificação para a recusa residia no facto de termos adquirido o bilhete discount: aparentemente, os passageiros pobretanas ou eram infectados ou ficavam a arder com o “guito”. Ainda preenchi o formulário no site flyTAP.PT para saber como resolver a situação: simpaticamente, responderam que estavam com um elevado número de chamadas e lamentavam a inconveniência que a situação me poderia causar…. “por esse motivo a alternativa mais célere para proceder de acordo com o pretendido é optando pela utilização do nosso site flyTAP.PT.”

WTF?! Ok, depois do Covid, entrámos definitivamente na Twilight Zone! Na minha cabeça, transformei os duzentos euros que tinha pago pelo voo num donativo à companhia.

Na verdade, não íamos visitar a Áustria, mas tão-somente Viena. Afinal, não pretendíamos infectar todas as florzinhas dos Alpes, mas apenas a cidade do concerto de ano novo, das valsas, das cabeleiras arranjadas e das cabeças que, por elas abrigadas, compuseram algumas das mais belas melodias de sempre. Contudo, não é tanto a Áustria da exuberância de Mozart, Mahler ou Schubert de que eu gosto mas a que se esconde na sombra de Zweig, Bernhard ou Bachmann.

Havia explorado a cidade no papel, algo a que raramente me proponho. Até já tinha dois planos de custos traçados, um para comer “à mitra” e outro um pouco menos discount, isto se nos deixassem entrar nos restaurantes, claro, sem sermos obrigados a esfregar os pulmões com um escovilhão de palha-de-aço, não fosse o vírus armar-se em resistente dentro dos nossos corpos de segunda categoria: afinal eramos portugueses, esses carregadores industriais de Covid, o último reduto europeu onde a doença pensou: Olha, não é que chegámos ao terceiro país mais seguro do mundo! Como o primeiro é muito longe e o segundo muito frio, ficamos por aqui!

Pesquisei o passe de Viena, o comboio para Budapeste (sim, não iriamos limitar os nossos perdigotos às vias respiratórias dos vienenses mas havíamos decidido passar a fronteira para outro “território fofinho” e passear o sotaque covidiano primeiro por Buda e depois por Peste) e o Prater. Na verdade os bailados e todos esses brilhantes e pisca-piscas em tons de cagança austro-húngara pouco me interessavam, tal como o parque ou a roda gigante. Quando a palavra Prater se forma no meu pensamento é a imagem do Ernst Happel que surge, palco da final vitoriosa do FCP diante do Bayern em 87 com o calcanhar de Rabah Madjer, e da derrota do Glorioso três anos mais tarde diante do todo-poderoso AC Milan, com um golo solitário do escarrador-mor das décadas de 80-90: Frank Ryjkaard (estes holandeses são tão bons na escrita quando na solidariedade para com os países que não gozam do privilégio de ter ganho imunidade à aldrabice das estatísticas covidianas).

A menos de um mês da partida veio a salvação: um cancelamento seguido de remarcação da viagem por parte da companhia concedia-nos automaticamente direito a voucher em caso de desistência. Claro que do jeito que as coisas estão, é bem possível que se converta num presente envenenado mas pelo menos psicologicamente já não perdemos tudo. Só tivemos que decidir o que fazer: esperámos até à data-limite do reembolso integral do apartamento e cancelámos (com alguma pena, mas, com tanta turbulência, sem demasiada pena) a viagem, depois de os anfitriões terem demonstrado todo o europeísmo, prolongado por duas semanas adicionais a proibição da nossa entrada em Viena de Áustria (como se houvesse muita Vienas pelo mundo!), ao mesmo tempo que fingem acreditar que a curva deles achata depois do desconfinamento… o vírus deve ter medo da batuta, só pode…

De Moscovo a Viena, não se passou nada a não ser uma pandemia: viagens é que nem vê-las!

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