O conceituado crítico de cinema João Benárd da Costa titulava Sonata de Outono, um dos melhores filmes de Ingmar Bergman que explora a dimensão psicológica de duas mulheres problemáticas, como um trabalho “sobre atores ou sobre atrizes”. Tal acontece porque dissuadia a barreira entre o desempenho das estrelas protagonistas em relação à sua própria personalidade. Além disso, Höstsonaten, título original, é uma peça importantíssima da cinematografia do realizador sueco nascido em Uppsala a 14 de julho de 1918, uma vez que colabora com a sua compatriota Ingrid Bergman – apesar do mesmo apelido, não são parentes -, atriz conceituada do cinema americano (para Hollywood a sua interpretação não passaria despercebida, com a nomeação ao Óscar da Academia de Melhor Atriz), algo de facto excecional.
É certamente nesse aspeto, a performance de Bergman, que encontramos em Sonata de Outono um riquíssimo objeto de estudo sobre as relações humanas, neste caso específico entre uma mãe Charlotte (Ingrid Bergman) e a sua filha Eva (Liv Ullmann), naquele que pode ser também rotulado como o elo dos elos. A atriz oferece, quiçá, o seu melhor desempenho, transformando-se tanto física como psicologicamente numa pessoa demasiado egoísta, sem que ela própria dê por isso. Antes de continuarmos os atributos que lhe são dignos, é primordial decifrar a narrativa um quanto cíclica deste filme.
Charlotte: I’m seized by fear and see a horrible picture of myself. I have never grown up. My face and my body have aged. I acquire memories and experiences but inside all that I haven’t even been born. I can’t remember any faces not even my own.
Logo no início, os créditos demonstram aquilo que nos espera, o outono enquanto estação e o seu impacto nas pessoas. Todos nós conhecemos essa temporada da queda das folhas, aquele momento que implica a morte, mas cedo trará a vida nas estações vindouras. Se quisermos revela-se como meio termo, o renascimento do que propõe ganhar nova cara, com as árvores a apresentar uma nudez subjacente no misto de cores (o laranja, o castanho, o vermelho e o amarelo) refletidas ainda na câmara de Bergman.
Sonata de Outono começa com o corte da quarta parede, ou da também designada quarta barreira, através de Viktor (Halvar Björk), marido de Eva que a descreve para o espetador enquanto mulher e esposa, e que não está muito longe dela. Vemos Eva a escrever uma carta que mais tarde saberemos que se dirige à sua mãe, mas no exato momento em que se levanta, ao encontro do seu amado, este desaparece do local onde se encontrava. Agora está noutra repartição da casa, no seu escritório, a dactilografar na sua máquina de escrever, caracterizando-o na anterior situação como uma espécie de fantasma. E é essa presença fantasmática que se repete, alguém que funciona como um à parte, à tão fulcral dupla Charlotte e Eva.
Na verdade, sabemos que Eva predispõe-se a receber a mãe na sua casa após a morte de Leonardo, o amante de longa data desta última. Inclusive, o reencontro dá-se após sete anos, período conturbado para ambas, cujos eventos serão constantemente trazidos ao de cima, servindo de ataque de uma à outra, numa discussão que vai literalmente de mal a pior.
Eva: The mother’s injuries are to be handed down to the daughter. The mother’s failures are to be paid for by the daughter. The mother’s unhappiness is to be the daughter’s unhappiness. It’s as if the umbilical cord had never been cut.
Nestes instantes apresentam-se como duas mulheres completamente desgastadas e desconsoladas no campo emocional, aliás diríamos, que nelas pesam as palavras do argumento. Eva, por exemplo, utiliza no seu discurso as razões para que uma filha nunca consiga ser ela própria, pois é um permanente reflexo dos problemas da mãe. Inicialmente e devido à caracterização da personagem enquanto ‘a pobre coitada’, a insegura e a frágil, o espetador nutre, para com ela, uma certa afeção, todavia e de um momento para outro, transforma-se numa sanguessuga, alguém que não aprendeu a ultrapassar os seus medos sozinha, ou com apoio psiquiátrico, insistindo na culpa da progenitora.
Já Charlotte, por um lado, admiramo-la, pois nunca desistiu dos seus sonhos profissionais e é bastante extrovertida, mesmo mostrando um cético cansaço com as suas dores nas costas, no entanto e por outro lado, nunca quis assumir quaisquer responsabilidades maternais, sendo o ‘monstro’ com falta de afetos. O ponto que o percebemos é na sua atitude para com a outra filha, Helena, incapacitada a nível motor. Charlotte sempre ansiou no seu íntimo pela morte da ‘cria doente’ e Eva sabe-o bem. Ora é aqui que temos o expoente máximo do desempenho de Bergman. A atriz que sempre esteve associada a papéis porventura mais dóceis, mesmo nas suas colaborações com Roberto Rossellini, torna-se efetivamente apática, mas que não deixa de ser racional à sua maneira.
Para sustentar todas estas ideias, o filme de Bergman satisfaz-se na música – temos Chopin ou Handel. Como o próprio realizador definiu, este é um filme sonata, um filme de rápidos e lentos segundos entre duas mulheres (um par que pode ser analisado isoladamente) que são pianistas e que outra vez se contrapõe. Uma é afamada pelas digressões mundiais agora terminadas, e a outra é amadora, um quanto deselegante, que não sabe ouvir críticas, mesmo que venham da sua mãe. No final as questões existenciais que atormentam o cineasta passam a ser também as nossas questões. Será que mãe e filha podem reencontrar aquilo que as une? Pode o cordão umbilical ser cortado?
Enfim, de qualquer maneira a câmara de Bergman é sempre, mesmo sempre notada. Conciliada à direcção de fotografia de Sven Nykvist que valoriza grandes planos (os close-ups), esta é uma experiência arrebatadora, que evoca uma dimensão humana tão questionável, mesmo que o assista numa humilde edição em DVD.
Ficha técnica
Ano de Produção: 1978/ Título português: Sonata de Outono/ Título original: Höstsonaten/ Realizador: Ingmar Bergman/ Argumento: Ingmar Bergman/ Elenco: Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Lena Nyman, Halvar Björk, Marianne Aminoff, Arne Bang-Hansen, Gunnar Björnstrand/ Música: Frans Brüggen, Anner Bylsma, Claude Genetay, Käbi Laretei/ Duração: 99 minutos