Ilhas na Corrente

Muitos anos depois, voltei a ler Hemingway.

O escritor americano foi um dos autores mais importantes do início da minha vida de leitor a sério, aos dezoito anos. Entre os dezoito e os dezanove anos, li cinco livros seus.

Excluindo O Adeus às Armas, por nenhuma das restantes obras de Hemingway me apaixonei à primeira, sendo lentamente seduzido ao longo da leitura, para invariavelmente terminar a leitura dos seus livros sem que eles saíssem de mim. É um efeito possível dos bons livros, mas sobretudo dos grandes escritores. Aconteceu com Paris é uma Festa, com Fiesta e com Por Quem os Sinos Dobram (esqueçamos O Velho e o Mar).

Não sei se o responsável por tal perenidade seja o estilo do autor, senão mais o facto de serem histórias que, mais do que no enredo, se centram na descrição do ambiente e na profundidade das personagens. É um risco, pois Hemingway arrisca uma escrita aborrecida se não entrarmos nas touradas, na guerra, na boémia, pesca ou caçada. Não obstante, caso tenhamos a sorte de ultrapassar esse bloqueio, é um prazer, enquanto leitor, viajar no espaço e no tempo e testemunhar a vida deste homem tão complexo (grande parte dos personagens são alter egos seus).  

Ilhas na Corrente, o primeiro romance de Hemingway publicado postumamente, esteve anos (talvez décadas) na estante à espera do momento. Comprei a edição dos Livros do Brasil numa promoção de hipermercado, na esteira da “fase Hemingway” de jovem adulto, por cinco euros. Na altura devia estar desiludido com O Velho e o Mar e, ao perceber que também este se passava todo na água (as três partes são: Bimini; Cuba e No Mar), adiei.

Ilhas na Corrente pertence a esta categoria de livros que caracterizam um tempo e um lugar, assim como os seus intérpretes. O pintor Thomas Hudson é Hemingway, e a acção nas três partes da obra vai desde a década de trinta à fase final de II Guerra. E é uma experiência maravilhosa vermo-nos transportados para as Caraíbas de há oitenta ou noventa anos, e sentirmos como o personagem principal muda de uma parte para a outra de forma tão drástica, tal a força dos acontecimentos que o atropelam. Nem parece o mesmo entre Bimini, onde recebe a visita dos três filhos na sua casa da paradisíaca ilha das Bahamas, Cuba, cuja acção nos é dada quase exclusivamente através de diálogos que acontecem num bar da ilha, muito antes do tempo de Fidel, e No Mar, onde Thomas Hudson percorre o mar e as ilhas semi-desertas em perseguição de um submarino alemão (algo que o próprio Hemnigway fez). Só que a vida é assim, muda-nos e molda-nos, nem que seja à força do escopro das tragédias.

Ao longo das três partes desta história, Thomas Hudson vai mudando (ou muda radicalmente), tentando desviar-se dos tiros com que a vida o fustiga, encontrando refúgio nos diversos sucedâneos que procura. Percebe, no entanto, não ser possível fugir eternamente às tragédias, e talvez seja essa a sua maior vitória.

A pesca e as prostitutas, as bebidas e os demónios interiores, a inocência da juventude e a desilusão dos amores desencontrados, o serrabulho da vida portuária e a força do mar, tudo sustentado numa escrita limpa, quase desconcertante, que traduz a força de viver de um homem e o encanto pelos lugares por onde foi passando, as mulheres que foi amando, como se tivesse que beber a vida até ao último copo para que nada lhe escapasse. E, no entanto, escapa-se-lhe sempre tanto.

Muitos anos depois, acertei no momento. Naquele tempo, pela decisão de trazer para casa um prazer futuro à espera de maturidade; e no presente, por ter levado a leitura a bom porto. Não um livro perfeito, mas já tinha saudades de Hemingway. Foi bom voltar aos tempos da Faculdade, onde descobria Hemingway nas viagens no comboio da linha de Cascais, a sentir de novo por que foi ele foi tão importante na minha vida.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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