Instalados na vida, cheios de si mesmo, conversavam sobre o passado. Todos eles tinham chegado aos lugares de destaque, aqueles que ambicionaram desde sempre, mas notava-se uma pontinha de qualquer coisa que não batia certo. De fatos completos e convencionais (para não lhes ser apontado fosse o que fosse), ajeitavam as gravatas que eram, previamente, escolhidas pelas respectivas esposas.
O tempo, aquele sacana enganador, tinha-os traído e as recordações eram o único bem genuíno que ainda possuíam. Todos com sorrisos estampados nas faces, daqueles que ficam colados e já não saem, de copo na mão, lembravam tempos em que ainda podiam fazer escolhas e serem verdadeiros e sinceros. Onde é que tudo isso se encaixava agora?
Um falava do tempo em que pegava na viola e juntamente com os amigos ia até à praia para tocar e cantar. Momentos de descontracção que nunca poderiam voltar a acontecer. Pequenos segredos que eram venenos. Outro, enquanto esfregava a barriga, relatava os passeios de bicicleta com a amiga de infância de quem se tinha afastado, porque a namorada assim o obrigou. Tinha tantas saudades, mas não se atrevia sequer a procurá-la. Um terceiro relembrava os banhos de sol na praia de nudistas e a relação fugaz com um jovem estrangeiro. Um quarto ouvia-os e não falava.
Subitamente as lágrimas soltaram-se e recordou-se dela, daquela que o tinha feito quebrar as regras e superar todos os limites. Era um choro tão sentido que deixou os outros sem acção. Que se passava? Alguma coisa com os filhos? Talvez com a mulher? Nada disso. Era ela que o atormentava e que parecia ter surgido à sua frente para o provocar. Estava ali, a olhar para ele, para a sua alma e a sugar o seu mais íntimo. Ela que o fez ser homem, ela que o fez sentir, ela que o transformou. Ela.
Por onde andaria? Teria conseguido continuar a ser tão livre como queria? O copo já tinha a mistura das suas lágrimas que gelavam no fundo. Faziam uma espécie de desenho que tornava ainda mais macabro o ambiente. Ele era o mais bem-sucedido de todos, o que já estava no topo e que fazia as exigência que entendia. Porém, não naquele momento. Sentia-se novamente aquele menino que se tinha apaixonado pela menina. A menina que o ouvia tocar viola, que cantava e tocava com ele, que andava de bicicleta, que apanhava banhos de sol e de sal e que os lábios lhe sabiam a amor ardente.
O momento passou e o decoro e compostura regressaram. A viola voltou para o saco e a voz calou-se, a bicicleta deixou de existir e a amiga passou a miragem. O jovem estrangeiro transformou-se em figurante de um filme neo-realista e as gravatas voltaram a tapar as mágoas acumuladas nas entranhas. Que dor. As lágrimas secaram-se, mas ela teimou em ficar. Continuava a olhar para ele, na sua pureza e perfeição de passado que nenhuma vida feita poderia ou conseguiria apagar.
– Dr. o seu cliente já chegou. Posso mandar entrar?
– Só mais um pouco. Ainda estamos a deliberar.
– Muito bem.
Tinha acontecido ou teria sido somente um sonho que se tinha instalado na sua mente a pregar partidas? Sentiu o cheiro dela e o seu sabor a insegurança e entrega. Abanou a cabeça. Nada daquilo era real. Os outros olhavam para ele. A vida real chamava e estavam todos presentes. Menos ele que ainda estava parado naquele dia em que a tinha conhecido. Onde estava? Suspirou. Levantou a cabeça.
– Está terminada a reunião.
Levantaram-se e saíram. Cada um pegou na sua recordação e guardou onde conseguiu. Ele não sabia o que fazer. Uma enorme vontade de a procurar invadiu-o, mas tentou refrear-se. Lembrou-se da mulher e dos filhos. Da vida que sempre tinha desejado e conseguido. Tinha tudo o que se poderia querer: mulher, filhos, posição, dinheiro e poder. Pois sim. Contudo, não a tinha a ela. Baixou a cabeça e as lágrimas voltaram a cair. Deixou-se ficar. Que coisa! Um homem não pode sofrer?