+1 202 555 0180

Have a question, comment, or concern? Our dedicated team of experts is ready to hear and assist you. Reach us through our social media, phone, or live chat.

O Crítico, o Juiz e o Pensador

Victor Hugo, escritor francês do século XIX, deixou-nos uma curiosa frase, que diz: “Raspai o juiz, encontrareis o carrasco.” Se tal já seria verdade há praticamente dois séculos, hoje, com a sociedade da informação totalmente sedimentada e acessível, olhamos para o mundo e vemos como a crítica e o julgamento estão tão enraizados, de forma, muitas vezes, doentia e incorrecta. Se o falar e o comentar da vida do outro sempre foi um hábito, ainda que muito questionável, hoje há a crítica mordaz e o julgamento popular, à distância de um teclado e de uma ligação à internet.

Hoje, a crítica, o apontar de dedo, o julgamento, estão presentes duma forma, por vezes, violenta, aguerrida, com a intensidade que, noutras coisas que apenas têm a ver com a nossa vida, não existe nem em metade. Em todo o canto há uma espécie de censor, pronto a apontar o erro, a dizer o que acha ou deixa de achar, maior parte das vezes com o tom de quem sabe muito sobre a situação alheia, mas que se baseia num relato duma notícia, em cinco ou seis linhas ou parágrafos que alguém colocou, baseado em mais uma parcela da verdade.

Muitas vezes, o que vejo e sinto, ao observar algumas destas situações, é que atingimos um ponto em que olhar para a nossa própria vida e ver as nossas próprias sombras se tornou doloroso, pois obriga-nos a mexer em coisas que não temos a coragem de alterar, a tomar decisões que nos levarão a ter de prescindir de outras coisas, de “sofás confortáveis” dos quais não nos queremos levantar. Então, dentro de cada um de nós, começam a acumular-se raivas, revoltas, mágoas, frustrações, que temos, em algum momento de descarregar. Torna-se mais fácil libertar isso nas figuras, ditas, públicas, nas notícias dos jornais e revistas, nas redes sociais, sobre a vida dos outros.

Ainda que a crítica, por não concordância ou por ideologia diferente, até mesmo como forma de mostrar um ponto de vista que, talvez, não tenha sido tomado em conta, possa ser interessante e produtiva, a fronteira entre o crítico e o juiz é muito ténue na sociedade em que vivemos, em que se tornou tão fácil julgar o caminho do outro, em, muitas vezes, acusá-lo, tão simplesmente porque encontramos nele algo que em nós também está, em nós vive e que em nós não temos a coragem de trabalhar, de assumir, de transformar. Se a fronteira é ténue, a barreira que ela cria, o muro que ela levanta, é gigantesco, e do seu topo, onde nos colocamos, são ditadas sentenças provindas duma visão míope, incorrecta e redutora da realidade.

A crítica tornou-se lei e o que não faltam são críticos em todo o lado, que nos apontam as falhas dos outros, do sistema, dos governos ou de outra coisa qualquer, muitas vezes carregadas das suas próprias falhas, dores e frustrações. Num tempo de verdades absolutas, onde as divisões são tão amplificadas, ainda que sejam, tendencialmente, desnecessárias, como homem e mulher, esquerda e direita, branco e preto, hétero e gay, cristão e muçulmano, entre tantas e tantas outras, a lei da crítica leva a que cada um se torne um juiz de causa nenhuma, de dedo em riste, reflectindo apenas uma coisa, o medo, o receio e a fragilidade em que a sua identidade e a sua personalidade se baseiam. No fundo, essa é a sociedade que construímos nas últimas décadas, que agora se tornou uma espécie de bomba relógio, com mecanismos a rebentar aqui e ali.

Arriscaria dizer que falta tomada de consciência, aquela que se obtém quando nos debruçamos sobre os assuntos e olhamos para dentro de nós, compreendendo o entendimento e a afectação deles sobre nós mesmos. Se temos excesso de críticos e (falsos) juízes, temos muita falta de pensadores, de filósofos, o que, acredito, todos poderíamos e deveríamos ser, nomeadamente sobre as nossas vidas. No entanto, a realidade é que fomentamos o não pensamento, o consumo imediato, sem esforço, sem reflexão, a preguiça e a resignação. Tornamo-nos imaturos, ainda que o tempo passe e nos envelheça, pois não temos uma atitude de foco sobre nós mesmos, de nos colocarmos em causa, e de olhar o outro sobre a premissa de um espelho de nós mesmos.

Acredito que, por isso, o mundo de hoje nos esteja a pressionar com tantas situações, com tantas ameaças, com crises de toda a natureza, para que, no fundo, possamos centrar-nos, verdadeiramente, em nós mesmos, larguemos a tentação de nos tornarmos juízes da vida alheia, deixarmos a crítica. Só numa atitude de olhar para dentro, de reflectir sobre nós mesmos, em cada momento, podemos assumir um lado de pensamento, de construção, que, em vez de apontar o dedo, estende a mão com o intuito de criar uma corrente, uma ponte, um foco de união. Tal se aplica ao mundo que nos rodeia, como a nós mesmos, pois é sobre nós que devemos largar a atitude de crítica e de julgamento constante, tantas vezes destruidoras e castradoras, e assumir o papel de pensadores e construtores das nossas próprias vidas.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Os bairros históricos de Lisboa

Next Post

Os desvarios da Direita, a Caixa Geral de Depósitos e o Centralismo

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Pés de Lotús

Este é o nome por que ficou conhecido o hábito de enfaixar os pés das meninas chinesas para que estes ficassem…

Hoje NÃO

Não aguento mais. Mais disto não. Mais um estalo. Mais um pontapé. Mais um olho negro. Estou prestes a cair num…

Kiss, Kiss, Bang, Bang

No momento em que The Big Bang Theory decidiu apostar num romance entre Leonard e Penny, começou a surgir uma…