Victor Hugo, escritor francês do século XIX, deixou-nos uma curiosa frase, que diz: “Raspai o juiz, encontrareis o carrasco.” Se tal já seria verdade há praticamente dois séculos, hoje, com a sociedade da informação totalmente sedimentada e acessível, olhamos para o mundo e vemos como a crítica e o julgamento estão tão enraizados, de forma, muitas vezes, doentia e incorrecta. Se o falar e o comentar da vida do outro sempre foi um hábito, ainda que muito questionável, hoje há a crítica mordaz e o julgamento popular, à distância de um teclado e de uma ligação à internet.
Hoje, a crítica, o apontar de dedo, o julgamento, estão presentes duma forma, por vezes, violenta, aguerrida, com a intensidade que, noutras coisas que apenas têm a ver com a nossa vida, não existe nem em metade. Em todo o canto há uma espécie de censor, pronto a apontar o erro, a dizer o que acha ou deixa de achar, maior parte das vezes com o tom de quem sabe muito sobre a situação alheia, mas que se baseia num relato duma notícia, em cinco ou seis linhas ou parágrafos que alguém colocou, baseado em mais uma parcela da verdade.
Muitas vezes, o que vejo e sinto, ao observar algumas destas situações, é que atingimos um ponto em que olhar para a nossa própria vida e ver as nossas próprias sombras se tornou doloroso, pois obriga-nos a mexer em coisas que não temos a coragem de alterar, a tomar decisões que nos levarão a ter de prescindir de outras coisas, de “sofás confortáveis” dos quais não nos queremos levantar. Então, dentro de cada um de nós, começam a acumular-se raivas, revoltas, mágoas, frustrações, que temos, em algum momento de descarregar. Torna-se mais fácil libertar isso nas figuras, ditas, públicas, nas notícias dos jornais e revistas, nas redes sociais, sobre a vida dos outros.
Ainda que a crítica, por não concordância ou por ideologia diferente, até mesmo como forma de mostrar um ponto de vista que, talvez, não tenha sido tomado em conta, possa ser interessante e produtiva, a fronteira entre o crítico e o juiz é muito ténue na sociedade em que vivemos, em que se tornou tão fácil julgar o caminho do outro, em, muitas vezes, acusá-lo, tão simplesmente porque encontramos nele algo que em nós também está, em nós vive e que em nós não temos a coragem de trabalhar, de assumir, de transformar. Se a fronteira é ténue, a barreira que ela cria, o muro que ela levanta, é gigantesco, e do seu topo, onde nos colocamos, são ditadas sentenças provindas duma visão míope, incorrecta e redutora da realidade.
A crítica tornou-se lei e o que não faltam são críticos em todo o lado, que nos apontam as falhas dos outros, do sistema, dos governos ou de outra coisa qualquer, muitas vezes carregadas das suas próprias falhas, dores e frustrações. Num tempo de verdades absolutas, onde as divisões são tão amplificadas, ainda que sejam, tendencialmente, desnecessárias, como homem e mulher, esquerda e direita, branco e preto, hétero e gay, cristão e muçulmano, entre tantas e tantas outras, a lei da crítica leva a que cada um se torne um juiz de causa nenhuma, de dedo em riste, reflectindo apenas uma coisa, o medo, o receio e a fragilidade em que a sua identidade e a sua personalidade se baseiam. No fundo, essa é a sociedade que construímos nas últimas décadas, que agora se tornou uma espécie de bomba relógio, com mecanismos a rebentar aqui e ali.
Arriscaria dizer que falta tomada de consciência, aquela que se obtém quando nos debruçamos sobre os assuntos e olhamos para dentro de nós, compreendendo o entendimento e a afectação deles sobre nós mesmos. Se temos excesso de críticos e (falsos) juízes, temos muita falta de pensadores, de filósofos, o que, acredito, todos poderíamos e deveríamos ser, nomeadamente sobre as nossas vidas. No entanto, a realidade é que fomentamos o não pensamento, o consumo imediato, sem esforço, sem reflexão, a preguiça e a resignação. Tornamo-nos imaturos, ainda que o tempo passe e nos envelheça, pois não temos uma atitude de foco sobre nós mesmos, de nos colocarmos em causa, e de olhar o outro sobre a premissa de um espelho de nós mesmos.
Acredito que, por isso, o mundo de hoje nos esteja a pressionar com tantas situações, com tantas ameaças, com crises de toda a natureza, para que, no fundo, possamos centrar-nos, verdadeiramente, em nós mesmos, larguemos a tentação de nos tornarmos juízes da vida alheia, deixarmos a crítica. Só numa atitude de olhar para dentro, de reflectir sobre nós mesmos, em cada momento, podemos assumir um lado de pensamento, de construção, que, em vez de apontar o dedo, estende a mão com o intuito de criar uma corrente, uma ponte, um foco de união. Tal se aplica ao mundo que nos rodeia, como a nós mesmos, pois é sobre nós que devemos largar a atitude de crítica e de julgamento constante, tantas vezes destruidoras e castradoras, e assumir o papel de pensadores e construtores das nossas próprias vidas.