Os bairros históricos de Lisboa

O crescimento das cidades europeias ao longo do século XVIII tornou-se uma realidade. A Revolução Industrial foi a principal responsável por este surto urbanístico. A evolução das cidades não teve como única consequência o seu alargamento, também se traduziu em profundas alterações do espaço, nomeadamente na concepção política, económica e social, que a nova mentalidade acarretava.

Depois do terramoto de 1755, o Marquês de Pombal teve a tarefa hercúlea da reconstrução da cidade, o que acarretou alterações profundas no traçado e no próprio espaço. A zona da baixa, graças à geometria da quadrícula, formada pelas suas artérias e quarteirões, tornou-se um modelo de cidade iluminista.

O Terreiro do Paço deixa de ter o seu cariz nobiliárquico e passa a designar-se Praça do Comércio, dando, assim, primazia à nova classe social em ascensão, os burgueses. Honrava-se a actividade essencial para o ressurgimento económico e respectiva modernização do país.

O plano urbanístico está carregado de significado pois permite compreender a ligação existente entre a cidade  e o quotidiano da vida social, claramente influenciado pela recém criada burguesia pombalina. Surgem obras que, apesar dos sucessivos atrasos, representam o que de melhor se fazia pela Europa e pelo país.

O Teatro de S. Carlos, o Passeio Público, a Praça Camões, que se tornou o símbolo do romantismo e o Teatro Nacional D. Maria II, são emblemas desta época que moderniza a capital e enche o olho a quem a vê. Lisboa estava ao nível da melhor capital europeia, sendo comparada a Paris.

Nascem duas Lisboas antagónicas, mas complementares: a Lisboa operária, com os seus pátios e, mais tarde as suas vilas e outra, a cidade burguesa com os projectos audazes que pretendiam rasgar uma nova cidade a avançar pela zona rural, copiando os boulevards parisienses.

A Avenida da Liberdade foi o renascer dos escombros do Passeio Público. Novas avenidas, ladeadas por frondosas árvores avançavam pela cidade, destemidas e arrojadas nos seus planos. Os valores burgueses estavam na vanguarda, mas nunca foram completamente implementados. Ainda eram demasiado frescos para se concretizarem.

No entanto, há que referir os bairros mais antigos, aqueles que cresceram numa época mais remota e que albergaram a população que ainda se encontrava numa fase de desenvolvimento muito lento. Vou somente referir alguns e foram escolhidos de modo aleatório: o Bairro Alto, Alfama e a Sé.

O Bairro Alto nasceu no final do século XV. A cidade sufocava entre as muralhas que se tornavam apertadas. As epidemias e os surtos tornavam-se endémicos e aliado à explosão demográfica, foi necessário tomar medidas drásticas. O rei D. Manuel I deslocaliza a corte, do Terreiro do Paço, para a Ribeira das Naus, frente a um antigo sapal.

Uma zona, situada entra a rua do Loreto e a Travessa da Queimada, foi a escolhida para acolher um novo bairro, com um traçado ortogonal e casas de alvenaria. Aí se instalaram as pessoas que estavam em ascensão social e profissional, nomeadamente os cartógrafos, os pilotos e os pintores. Era a nova elite a chegar e a marcar a sua posição.

Em 1558, os Jesuítas acedem à Ermida de São Roque, protegendo-se da peste. Estava iniciado o chamariz para novas gentes se fixarem no local: mercadores, capitães, clérigos, burgueses novos e altos funcionários. Curiosamente aquando do terramoto de 1755, esta pequena igreja saiu incólume, transformando-se num local de culto.

No século XIX, a Imprensa encontra nesse bairro o seu poiso certo, dando luz aos títulos mais conhecidos. Durante o Estado Novo, o famoso lápis azul da censura não parou de viajar por aquelas ruas, cortando aleatoriamente o que encontrava. Depois do 25 de Abril de 1974, os filhos dos burgueses, consideraram aquela zona de destaque e foi por lá que decidiram morar.

Em 1982, uma antiga padaria dá lugar a um local de culto, uma discoteca que ficará nos anais da cidade de Lisboa. Com o nome de Frágil, situada na Rua da Atalaia, torna-se um local obrigatório. Figuras icónicas divertiam-se nesse espaço, nomeadamente António Variações, figura ímpar da sociedade portuguesa.

Alfama tem marcas da presença romana e foi também bairro mouro até à época da Reconquista e centro de presença judaica. Durante séculos esteve ligado à pesca. É um autêntico labirinto de ruelas e becos, descendo para a zona ribeirinha. Neste local podemos encontrar vestígios da Cerca Moura e da Cerca Fernandina.

Sendo um bairro de colectividades, tem uma enorme vida popular e persiste ainda o pequeno comércio. As muitas nascentes deram origem às termas, desde a ocupação romana, bem como a inúmeros chafarizes, tanques e banhos públicos, tendo sido uma ajuda fundamental em termos sociais uma vez que a água canalizada tardou em chegar.

Torna-se particularmente importante na altura dos chamados Santos Populares, sendo a noite de 12 de Junho a de maior movimento pois celebra o Santo António, protector da cidade de Lisboa. É um reduto de fadistas, convidando à sardinha assada, ao vinho tinto e ao desfilar na marcha.

Acendem-se fogueiras, saltadas por namorados num voto de amor eterno, vendem-se manjericos de cheiro, enfeitados com um cravo e uma quadra popular. Por todos os recantos se encontram pequenos altares, devotos ao santo, decorados com gosto popular e ingénuo, mas cheios de imaginação e fé. Apesar dos tempos serem outros, ainda persiste o hábito de mendigar uma moeda para o santinho.

É aqui que se encontra o miradouro de Santa Luzia cuja vista sobre a cidade e o Tejo deslumbra com a sua beleza. Este é o bairro que albergou a população mais pobre e foi mantendo as suas características durante séculos. As casas, muitas delas degradadas e caducas, convidam à conversa e às confidências. É o Fado que se vive na primeira pessoa e na memória colectiva.

O bairro da Sé, com o seu imponente edifício que guarda em si todas as épocas histórias, continua a ser um dos mais frequentados. Aí se encontra, igualmente, a Igreja de Santo António, local de grande devoção e que conserva, ainda, uma enorme quantidade de folclore e tradição.

De estrutura íngreme e irregular, a sua calçada é percorria pelos habitantes que entram em casa uns dos outros como se fosse sua. Muitas das casas foram transformadas em lojas onde se vende artesanato do país inteiro. É possível comprar tudo desde os Galos de Barcelos a recordações das Caldas da Rainha.

O crescimento deste local está relacionado com o culto ao santo que, segundo consta, é casamenteiro e especialista em objectos perdidos. Fernando de Bulhões foi menino do coro na Sé de Lisboa e aí iniciou os seus estudos tendo-se tornado o primeiro doutor português da igreja.

Santo António continua a ser evocado e todos os anos são celebrados os chamados Casamentos de Santo António, uma cerimónia colectiva, patrocinada pela Câmara de Lisboa, permitindo aos menos favorecidos terem uma festa tão desejada. Sendo um acontecimento mediático, este bairro torna-se um alvo fácil de curiosidade.

Nos dias de hoje estamos a assistir a uma descaracterização destes espaços, destas memórias colectivas e a total incúria e desprezo pelo passado da cidade. É certo que a evolução da vida não permite que se seja comandado pelos sentimentos, mas o património é de todos.

Os habitantes estão a ser desalojados, corridos literalmente, para fora das suas zonas de conforto, das suas vidas anteriores por motivos completamente absurdos. As rendas das casas subiram de modo exponencial não permitindo que os anteriores inquilinos possam permanecer nas suas antigas casas. Quem estiver na disposição de as adquirir, é logo afastado devido aos preços solicitados.

Os que são donos das suas fracções, tentam, a todo o custo, manter os seus lares e sobreviver num bairro que já não conhecem. Perdem as suas referências, os seus vizinhos, os seus passados comuns. Os grandes proprietários estão a proceder a remodelações de fundo e os edifícios aparecem com uma nova denominação: Hostel.

Lisboa enche-se de turistas, pessoas que a percorrem, de cima a baixo, calcorreando os bairros históricos sem nada saber sobre eles. Uma noite é passada num Hostel e outra num outro. Perde-se a essência e os naturais, aqueles que têm as suas raízes, sentem-se escorraçados e mal tratados pela autarquia.

Os interesses económicos são prevalecentes e o dinheiro rápido é conseguido. Abastarda-se o típico, encobre-se o genuíno e mostra-se o artificial. Os olhos de quem não conhece brilham com tudo o que lhes é dado observar. Não por saberem o passado, o que ali aconteceu, mas sim por ser diferente daquilo a que estão habituados.

Os carros dos habitantes são bloqueados e multados, notando-se nitidamente que estão a ser “convidados” a saírem das suas casas para as mesmas serem rentabilizadas até à exaustão. Penalizações criadas de má fé. Quem fica uns dias pela cidade usa o sistema de transportes públicos ou circula a pé.

Que fazer com as pessoas que nasceram e viveram toda uma vida nestes bairros? Deslocalizá-las torna-se complicado e os apoios de bairro, os vizinhos, as portas abertas e os auxílios sem pedido, deixam de acontecer. São, na sua maioria, idosos pessoas que já tiveram uma vida e que estão assustadas com o que lhes possa acontecer. É legítimo. É dramático e muito triste.

As zonas mais recentes perdem todas estas solidariedades, estas uniões que se foram criando ao longo dos tempos. São frias e cada um vive encerrado em compartimentos fechados sem se incomodar com quem se cruza. Um vizinho pode desaparecer sem que ninguém dê pela sua falta. A pressa em que se vive não permite este tipo de frescuras.

É lamentável esta falta de sensibilidade, de humanidade, mas é o sinal de uma sociedade que caminha para um materialismo exacerbado e uma total ausência de sensibilidade e bom senso. Do “bom-dia vizinhos” passamos para uma mudez crónica e uma total falta de comunicação. Caminhamos para onde? Para os Jardins do Mal onde só é vencedor quem souber ser mais malévolo que o outro.

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