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Um lugar perdido no mapa

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Silêncio. De vez em quando, um latido de um cão. Não se vê muito movimento pelos caminhos. Uma casa, ou outra com a chaminé a fumegar, persianas deitadas para baixo, portões trancados a cadeado, ruínas em pedra a dizer “Vende-se”…Estamos a sensivelmente 10km da vila de Monção, numa localidade com o nome de Barroças e Taias. Os Censos de 2011 indicam 319 habitantes, mas quem lá vive diz que são pouco mais de uma centena.

O correr dos dias

Manuel de Castro é um dos habitantes. É dos moradores mais velhos. Tem 94 anos. Está sentado numa cadeira ao Sol, enquanto segura com a mão esquerda a bengala. “Hoje São Martinho foi amigo”. Há semanas que não punha o pé fora do quarto. A chuva não tem cessado. Olha para o caminho à espera de ver alguém para conversar. Em 45 minutos, só passa uma pessoa. Nem repara.

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É durante estes bocadinhos que tem acesso ao mundo exterior, ou quando se sincroniza à rádio, sempre na Renascença. O momento alto do dia é as 18h30. “É a hora do tercinho”, diz. Quando há jogos de futebol, fica chateado e culpa os maçónicos. Não gosta da Televisão. Em tempos, chegaram a pôr uma no quarto, mas logo tiveram que a tirar. Conta que viu “desavergonhices” e que aquilo fazia-lhe mal à tensão. Porém, gosta de ler e tudo que tenha a ver com a religião Católica é bem-vindo.

Há dois anos que está viúvo. Não teve filhos. Mora com a afilhada. É a única família que tem. Existe outro afilhado, mas, desde que emigrou, nunca mais teve notícias. A ideia do Lar assusta-o. Um casal seu vizinho não teve tanta sorte. Já andam por lá há algum tempo e até tiveram muitos filhos. Agora, no seu lugar só resta uma casa vazia. Mais uma, no meio de tantas outras. “Há mais casas do que pessoas. E as que ainda tem gente, na sua maioria, só tem uma pessoa”, comenta. Também a sua está agora sem ninguém…

Fez de tudo um pouco. Foi trolha, carpinteiro e pedreiro. Sem esquecer o trabalho no campo. Além da agricultura, a aldeia tem uma forte ligação à indústria de extracção de pedra. Houve tempos em que as pedreiras empregaram mais de 200 homens. Só restam 20.

Filho único, o pai foi para o Brasil e por lá ficou, conta que, no tempo da PIDE, passou muita fome. “Comi muito pão que o Diabo amassou”. Num tempo em que “havia muita canalha”. Na escola em que andou eram pelo menos três em cada mesa. Hoje, não passa de uma Casa Mortuária.

Noutros tempos, pelos campos e pelos montes ouviam-se as raparigas a cantar. Agora, os montes e os campos estão dados ao abandono. Os jovens não vão para o campo, só os velhos, e esses estão a morrer. “Era um tempo mais bonito”, confessa.

À noite havia os serões. A rapaziada nova juntava-se, ao som das concertinas e das vozes afinadas e dançavam, sob os olhares tímidos das raparigas que fiavam o linho. Muitos casamentos começaram assim. Poucas décadas depois, as duas festas religiosas da aldeia juntas não conseguem reunir mais de duas dezenas de pessoas. Já houve anos em que uma delas não se realizou. Tudo indica que qualquer dia acabam.

“Antes era mais bonito”. Levanta-se e vai para o quarto. O Sol começa-se a esconder por detrás dos montes. É hora de voltar a refugiar-se no quarto.

A solidão de quem mora só

Mesmo ali ao lado, numa casa em pedra, mora Rosa Caldas. Vive sozinha. O marido morreu há uns anos, nunca teve filhos, a única família que ainda tem são duas irmãs, uma mora em Lisboa e a outra, apesar de morar próxima, não mantêm praticamente qualquer contacto, e um sobrinho, que está dividido entre cá e a Suíça. Em Março, celebra 70 anos. Afirma que é a idade média das pessoas da freguesia. “Não falta muito para que estejamos todos ali no buraco”, diz, referindo-se ao cemitério.

DR_umlugarperdidonomapa2Conta que tudo mudou repentinamente. Uma mudança que não se resume apenas à falta de gente. O próprio comportamento das pessoas é diferente. “Fico triste com este tempo, com o abandono das pessoas. Antes havia mais companheirismo, mais preocupação, mais interajuda, mais humildade. As pessoas passavam fome, é certo, mas partilhavam o pouco que tinham umas com as outras. Agora é cada um pro seu canto”. Uma mudança que sente como ninguém.

Sofre dos ossos. Já foi operada a um pé que partiu, ao joelho direito e possivelmente terá que ser operada ao outro joelho. O médico já a avisou inúmeras vezes para ter cuidado, pois corre o sério risco de ficar paralítica. Quando fala nisso, percebe-se que é algo que a perturba. Dá-se um silêncio. Silêncio esse apenas interrompido pelo barulho das tesouras. Está a podar a vinha. Não consegue abandonar o trabalho da lavoura. É mais forte do que ela. “Os jovens de agora querem emprego, mas não querem trabalho. Se não se trabalhar o campo, não há o que comer”, explica.

Porém, o que realmente lhe tira o sono é a solidão – “sinto-me sozinha. Não há a quem pedir ajuda”, desabafa por inúmeras vezes. Ainda no outro dia, enquanto andava pelo quintal, tropeçou numas escadas e caiu. Fartou-se de gritar e nada. Ninguém a ouviu, ninguém apareceu. Num outro tempo, dificilmente alguém não a socorria. Assim que os primeiros raios de Sol, apareciam ouvia-se logo as pessoas, as carroças e os animais pelos caminhos. Recorda-se de quando era jovem ir, pela manhã, buscar água à nascente e de ouvir as pessoas a cantar. “Era uma alegria”. Agora só o motor da carrinha do padeiro.

Quando precisa de ir ao médico, ou ao banco, vai de táxi. São dez quilómetros que a separam da vila mais próxima. Da última vez, a ida e volta ficou-lhe por 19 euros. Ir de camioneta nem pensar. Se antes havia praticamente de hora em hora, actualmente só existem duas para cada sentido e em horários nada adaptados às necessidades das pessoas. “As sete e meia é muito cedo para ir. Levo uma eternidade a levantar-me de manhã da cama. Depois só às quatro da tarde. Já não dá tempo para resolver a minha vida, como ir ao banco. É uma tristeza. As camionetas também andam vazias.”

Pensar como será tudo daqui a 20 anos torna-se difícil, mas uma coisa é certa – “este lugar vai desaparecer”, garante.

A esperança de um dia regressar

Bastam cinco minutos de conversa, para perceber o carinho que Manuela Fernandes sente pela aldeia que a viu crescer. A vida, essa, não foi a sua melhor amiga. Trocou-lhe as voltas. Já passaram alguns anos desde que se mudou para Viana do Castelo. Foi em 2005. Arranjou por lá trabalho num Centro Óptico e por lá ficou. Hoje tem 36 anos. Até podia ter ganho amor à sua nova morada, mas não, continua a querer regressar para o lugar de onde nunca quis sair – “o meu objectivo é voltar. Se tivesse possibilidades, nem pensava duas vezes”. Para já, vai tendo os fins-de-semana para matar as saudades. Não falha um.

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Faz parte de mais uma geração de emigrantes. Tem-se a sensação de que por aqui a emigração nunca abrandou definitivamente. Continua a ser rara a família que não tenha alguém no estrangeiro. Cada vez mais. As casas fechadas, a cada canto, dos emigrantes são prova disso mesmo. O seu irmão também emigrou. Já contabiliza 14 anos no Canadá. Dificilmente regressa.

Manuela ainda tenta indicar nomes de colegas que andaram consigo na escola primária, que não tenham saído. Não consegue dizer mais de três. “A maior parte está tudo fora, na Suíça e na França”, confessa. De repente sorri. O Facebook tem servido para reencontrar velhas caras conhecidas. Por vezes, até fica meia atordoada com certos pedidos de amizade. “Quem é este?”, “Quem é esta?”, questiona-se. É a mãe, muitas vezes, que a auxilia.

O futuro está na juventude. Tem consciência disso. Como também tem consciência de que a juventude de agora é “uma juventude dividida”. “Não há união”, solta. Há uns anos, ainda se criou uma Associação de Jovens. Durou pouco mais de um ano. A sua vontade agora é reactivar a Associação, porém, sente pouco apoio. “Sinceramente gosto disto. Podia-se fazer mais e melhor. Como desenvolver actividades junto dos idosos e dos mais novos. Entristece-me. Devia-se fazer alguma coisa. No papel, a Associação ainda existe, se não se fizer nada, a qualquer momento será extinta”.

Nas prateleiras da Junta de Freguesia estão expostas as Taças ganhas nos torneios de futebol inter-freguesias. Não foi assim há tanto tempo. Sem um campo próprio para competirem, os jovens da aldeia improvisaram um, aproveitando um terreno junto à escola primária. As balizas foram construídas com  “craivos”, barras de madeira usadas por norma na agricultura,  as redes com fios de enfardar palha e a marcação das linhas do campo com o auxílio de serrim. Poucos anos depois, o campo foi melhorado pela junta local, com a colocação de balizas e até postes de basquetebol. Hoje, está praticamente ao abandono. São raras as vezes em que se vê alguém por lá.

Na aldeia, Manuela ainda tem os pais e a avó. Sabe que os laços familiares e as origens a prendem a este lugar, como também sabe que é o gosto que tem pela sua terra que a levam a voltar sempre. E assim continuará a ser.

Quando o sonho não permite ficar

Se o futuro está na juventude, então é em rostos como o de Filipa Felgueiras que reside a esperança. Tem 15 anos. Está no 10º ano. Fala da fuga dos jovens dos meios rurais para as cidades com uma naturalidade impressionante. É como se nunca tivesse conhecido outra realidade. Talvez não tenha mesmo conhecido. Na escola, o assunto é recorrente, assim como em casa. Diz que dos seus colegas é a que mais quer cá ficar, porém, tem os pés bem assentes na terra – “Queria muito ficar. Se foi cá que nasci, é cá que quero dar lucro, mas sei que, por mais que tentemos, torna-se impossível ficar em Portugal”.

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Foi das poucas crianças que frequentou o infantário da freguesia. Fechou três anos depois de abrir. Assim como a nova escola primária, que tinha sido alvo de melhoramentos há meia dúzia de anos. Filipa estava, na altura, no 3º ano. Desde há um ano que o infantário se transformou num café/restaurante e a sala onde aprendeu a ler e a escrever num Centro de Convívio – vazio.

Confessa não ter ligação com os jovens da aldeia. Os fins-de-semana são divididos entre os estudos e ajudar a mãe com os arranjos florais, para ornamentar a Igreja. Os voluntários são praticamente nenhuns, tal como para ensinar a doutrina cristã aos mais pequenos. É ela que o faz, durante as férias. A “turma” é que é cada vez menor, “não chega a uma dezena”, conta.

O seu plano passa por seguir os estudos. Está dividida entre três áreas: Geologia, Criminologia, ou Astronomia. Um plano que inevitavelmente a afasta da aldeia. “Queria ficar em Barroças e Taias com os meus avós, porque sei que, se sair, raramente vou vir cá. Com o meu irmão é provável que aconteça o mesmo. Entristece-me pensar que a casa que o meu avô fez com as próprias mãos vá ficar deserta. Nós queremos ficar, mas sem trabalho é impossível. Falta o motor da economia – emprego. Temos de emigrar”.

No trajecto que faz de manhã quando vai para a escola, localizada na vila de Monção, tem reparado na quantidade de casas fechadas. Um fenómeno que tem vindo a generalizar-se e que a preocupa – “cada vez mais jovens abandonam as aldeias. E o pior é que os emigrantes de hoje, são emigrantes que já não construem cá casa e que raramente vêm visitar a sua terra natal”.

Sente-se revoltada com o que está a acontecer. Quando pensa no futuro, imagina a sua aldeia sem ninguém, o único movimento que terá, diz, será oriundo da estrada nacional. “Não estou de acordo em abandonarmos as nossas raízes, mas não temos alternativa. O emprego que ainda há é precário, logo, se desejamos ter melhores condições de vida, temos que inevitavelmente sair”.

Este é o retrato desta e de muitas outras aldeias portuguesas. Se para uns, a vida se resumiu à aldeia e à vida do campo, para outros, a escolha foi e é sair. Portugal é hoje um país desequilibrado com um interior deserto e um Litoral sobrelotado. Há décadas que se fala deste fenómeno, o que se questiona agora é se ainda vamos a tempo de salvar o mundo rural. A crise poderá ser o último golpe nesta história de abandono.

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Diana Rodrigues
Minhota de gema. Distraída. Aventureira. Gulosa. Crítica. Observadora. Anti rotina. Persistente. Sonhadora. Alguém que vê na evolução um objectivo. A escrita? É mais que uma fuga. É paixão. O jornalismo regional e a imprensa online são os intermediários.

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