Até que a morte nos separe

O meu cão é o meu melhor amigo.

O nosso melhor amigo ou amiga pode ser uma pessoa ou um animal. Muita gente se deve identificar com este texto, uma vez que a morte é algo que, na nossa cultura ocidental ainda é um assunto com o qual não estamos, de todo, e cada vez menos, preparados para enfrentar.

Há quem decida ter filhos. Eu escolhi ter um cão. O meu cão é um ser que faz despertar em mim os sentimentos mais puros, simples e bonitos que eu já alguma vez tive. Desperta em mim o papel de cuidadora ou de mãe. Os cães, para mim, são os seres mais puros e grandiosos do planeta porque mesmo quando crescem, continuam fiéis, ao contrário de muitos humanos.

Ao mesmo tempo, por ser um amor tão puro, desperta em mim um medo angustiante de o perder. Aceitar que um dia o vou perder é, no mínimo, aterrorizador, porque me custa aceitar que um dia nos vamos separar (o tal apego que nos faz sofrer de ansiedade).

O que é, então, a aceitação? Como aceitamos algo que não queremos?

Imaginemos que estamos a receber um presente de alguém e não gostamos dele. Devolvemos? Dizemos à pessoa que não gostamos ou deitamos fora? A morte não se pode deitar fora se a vida a traz naturalmente. Temos de aceitar esse “presente”. Esse dia em que vamos ter de lidar com essa dor de já não termos o nosso melhor amigo, pai, mãe, cão, irmãos… Lidar com essa dor será o nosso presente e ao aceitá-lo temos obrigatoriamente de o ver para depois decidir se vamos usá-lo para nosso bem ou deitá-lo fora – sabendo todos nós que quando não aceitamos a morte, estamos em negação da realidade e consequentemente a viver uma ilusão. Isso sim é um facto.

O meu cão, estando com uma doença crónica grave, está a preparar-me para essa aceitação que a vida me irá dar, talvez, mais cedo do que pensaria. Talvez porque essa angustiante incerteza da vida é outro “presente” que nos custa aceitar. Queremos certezas através de remédios, tratamentos e soluções milagrosas para a felicidade e assim evitar o nosso sofrimento. No fundo, ter controlo sobre as nossas emoções, sobretudo as menos felizes. Evitá-las, tentando ao máximo controlar qualquer situação que nos cause angústia e dor.

Do que todos nós temos medo é do sofrimento… já vem dos ensinamentos de Buda e não é novidade para ninguém, por ser até hoje uma luta constante de todo o ser humano. Luta? Sim, mas e se parássemos de lutar contra esse sofrimento?

Só quando nos rendermos e desistimos de lutar contra a incerteza e a necessidade de controlo que não depende de nós (entenda-se!) é que conseguimos, verdadeiramente, aceitar a vida tal como ela é. E aí, o sofrimento desaparece.

Eu estou nessa fase, em que estou a parar de lutar contra a minha resistência da incerteza da vida e apenas fazer o que estiver no meu controle, para aos poucos, me preparar para que nós os dois a certa altura da vida sigamos caminhos diferentes.

Que presente é este? Só na altura saberei. O meu presente de momento é tê-lo ainda comigo. E todos os dias serão sempre os melhores presentes da minha vida que compensarão a dor que terei ao vê-lo partir, um dia.

A morte só existe porque existe vida. E ainda bem que hoje, ainda vivemos juntos.

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