Hoje decidi falar-vos acerca de mim, de algumas preferências, questionamentos e dificuldades. Calma, não fechem já a página até porque ao contrário dos meus habituais artigos, longos e fastidiosos, desta vez prometo ser breve, pois como lá diz o aforismo: “não há regra sem excepção”. O tema versa sobre livros.
Confesso que desde os carcomidos bancos da escola sempre foi para mim uma insana contrariedade escrever sobre as obras que ia lendo. Cedo me encontrei a espiar os livros que encontrava nas prateleiras, tendo na leitura uma actividade prazerosa e estimulante. Mas escrever sobre eles, em redacções ou sinopses revoltava-me as vísceras e nunca compreendi bem porquê.
Continuo a debater-me com o mesmo problema, quando me é sugerido que escreva sobre um livro à escolha. Não tenho o perfil típico do “devorador de livros”. Adoro ler sim, mas sem qualquer exigência pessoal obrigatória quanto à respectiva periodicidade. Em média leio seis livros por ano, apenas um de cada vez e raramente o coloco na mesinha de cabeceira. Releio de seguida muitos deles.
Na verdade, é estranho. Diabo, até tenho uma razoável capacidade de síntese e gosto de o fazer. Não andará por aí o busílis da questão. Ler transporta-nos numa viagem interior, muito característica e de natureza bastante privada. E escrever sobre aquilo que lemos implica inexoravelmente um desnudar autobiográfico. Tal como escrever sobre qualquer outra coisa. Invariavelmente somos nós que estamos retratados naquelas linhas, com maior ou menor maquilhagem. Será essa uma das razões que tanto me afasta de escrever detalhadamente sobre livros? Talvez, pois a reserva da privacidade ocupa em mim um espaço assinalável.
Escrever sobre um livro à guisa de sinopse afigura-se-me uma perda de tempo. Qualquer um, em rápida pesquisa na Internet, encontra isso num piscar de olhos. Mas fazê-lo vestindo a pele de crítico literário é um desafio que não consigo ainda aceitar. Quem sou eu afinal para argumentar, ainda que fundamentadamente, sobre o trabalho do autor, que deve ter suado as estopinhas para o produzir e corrigir? Teria de calçar os seus sapatos, percorrer os seus caminhos e viver realidades semelhantes – uma impossibilidade. E uma ousada insensatez da minha parte. Provavelmente estarei apenas a racionalizar dificuldades… ou talvez nem tanto.
Discursar sobre um tema, um texto, uma frase, uma imagem, uma ideia, uma política… confesso que me é quase irresistível. Mas sobre uma obra, um trabalho aturado de anos? Não, de todo! Pelo menos por enquanto prefiro deliciar-me apenas com o sorver da leitura. Mas prometo tentar… em jeito de ensaio cauteloso, ou de desafio, para ultrapassar o enguiço.
Cada um de nós tem a sua necessidade de espaço vital. E defende-o mais ou menos afincadamente, com as armas que tem disponíveis e conforme a dimensão do mesmo. Confesso que o meu me dá algum trabalho. Sou avesso ao “porque sim”, ao elogio exagerado, à falsa modéstia, à publicidade e à moda. Já a moda tem uns bons anos e se encontra portanto “fora de moda”, quando finalmente lhe reconheço alguma utilidade e a adopto. Troco de canal quando surgem anúncios na televisão e esforço-me por deslindar as mensagens subliminares que cartazes colocam na minha passagem, quando me for de todo impossível evitá-los. Há em mim um crivo danado de sensores por onde tudo passa, que rejeitam o que me for desnecessário ou importuno.
A propósito de modas, tenho reflectido sobre uma que se iniciou há mais de duas décadas, se desenvolveu nos últimos anos e parece ter uma crescente aderência, mas relativamente à qual me ocorrem algumas dúvidas quanto à eficácia do seu principal objectivo. Trata-se da iniciativa de “esquecer” livros intencionalmente, em qualquer local de acesso ao público, com a finalidade última de incentivar a leitura.
Se numa análise superficial esta original actividade parece simpática e interessante, pela dinâmica do contacto inesperado entre a pessoa e o livro, quando me interrogo sobre o seu alcance efectivo permaneço reticente. Estimular a leitura em pessoas que não têm esse hábito enraizado é um processo algo difícil e moroso, que carece de um forte movimento interno da pessoa em causa, muito mais do que da simples visualização de um livro que surja “esquecido” na sua frente. Se não for um leitor assíduo é bem mais provável que guarde o achado algures em casa ou mesmo que o tente devolver, como muitas vezes sucede.
Já o mesmo não direi quando a partilha de livros ocorre entre apreciadores. Neste caso existe um benefício mútuo que potencia os hábitos de leitura adquiridos. Se o livro “achado” tiver por sorte um destinatário que seja amante da leitura, certamente fará exultar essa pessoa de satisfação, não porque se lhe estimulou quase por magia o gosto de ler, mas porque tal já existia previamente. Clubes de leitura, círculos de leitores e quaisquer outras iniciativas similares cumprem essa função.
Incentivar com êxito a leitura implica um trabalho criterioso e persistente que deve ser iniciado desde tenra idade nomeadamente pelos pais, educadores e professores. Eu até acredito que a iniciativa supramencionada desperte alguma curiosidade pela leitura a um conjunto reduzido de pessoas, mas será que realmente “esquecer” um livro a esmo, ainda que o gesto seja repetido por inúmeros adeptos bem intencionados, é mesmo um contributo relevante para estimular, de forma massiva e eficaz, o hábito da leitura?

Incentivo à leitura?
20/09/2023
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