Back From The Dead

Despida da anterior estética infantil algo Lolita e kitsch que caracterizou as eras “Cry Baby” (2015) e “K-12” (2019), Melanie está de volta, completa com dois pares de olhos e próteses rosa de corpo inteiro. Esta sua nova imagem convida-nos a entrar num mundo mais obscuro de fadas, morte e reincarnações, mas com a mesma interpretação surrealista pop do mundo, que é inequivocamente sua.

Desde o seu primeiro EP que Melanie faz uso desta temática associada à inocência de uma criança, ao apresentar o seu mundo ao nosso com a sua personagem na faixa homónima. Tendo sofrido de bullying na escola, fala de ser apelidada de “cry baby” (bebé chorona) por se revelar demasiado sensível às palavras e acções dos outros. No entanto, “Cry Baby” trata-se de uma compilação de razões em que contesta este nome que lhe chamam e repudia o que os outros pensam, de como a sua sensibilidade é uma mais-valia que lhe permite experienciar emoções com uma maior profundidade e intensidade do que os outros, simultaneamente abordando assuntos-tabú como o abuso de substâncias, a infidelidade e a dismorfia corporal.

“PORTALS” é o terceiro álbum de Melanie, seguindo-se a “K-12” (2019) e fechando o ciclo desta personagem que Melanie criou no início da sua carreira para se expressar. Neste álbum, conseguimos compreender algumas das batalhas que esta trava actualmente, nomeadamente contra a imagem que o público formou sobre ela e o escrutínio a que a fama a sujeitou, num mar de interpretações válidas tanto para quem é vivo, como para quem já atravessou para o outro lado – palavras da própria. Sonicamente, não se assemelha a nada que a jovem cantora-compositora tenha feito no passado, fazendo mais uso de distorções vocais, bateria e guitarra eléctrica. Este álbum conta muito mais com a sua participação na produção musical.

O novo álbum de Melanie Martinez

“DEATH” é o primeiro single do álbum, assim como a primeira faixa do mesmo, com direito a videoclipe. A paleta de cores outrora luminosa e pastel deu lugar a uma nova com tonalidades escuras, fazendo uso de verdes e tons de terra numa atmosfera florestal sombria, em que as árvores, os cogumelos e as fadas reinam.

Na faixa, começa-se por ouvir “Death is Life, is death, is life, is death, is life is…”, seguido do batimento de um coração e um instrumental etéreo. Melanie renasce, e começa a cantar.

Esta sabe que todos anseiam pela sua presença de novo, e assume que nunca verdadeiramente saiu de cena; só se ausentou durante um tempo, passando por transformações – emocionais e físicas – e mostra estar de volta mais forte que nunca.

Em “VOID”, Melanie experimenta com novos sons que saem do registo que apresentou até agora, conferindo à faixa um cariz mais alternativo e menos Pop como no passado, algo que caracteriza todo o álbum, na verdade. O desespero com que profere as palavras do refrão parece genuíno e essa sensação fica connosco. É neste marco que é aprofundada a temática da alienação e da dismorfia que Melanie sente – por ser como qualquer outra pessoa com acesso às redes sociais, que acabam por toldar a visão que tem de si própria de forma negativa e por ter a compreensão de como funciona o mundo de Hollywood, agora que já está por dentro do mesmo há alguns anos. Esta temática é muito explorada ao longo de todo o álbum, pois Melanie sente que se querem aproveitar dela e da sua arte, reduzindo-a à sua aparência física ao observar e comentar com grande vigilância cada passo que dá (“TUNNEL VISION”, “LEECHES”, “SPIDER WEB”).

Acordando do que se compreende como “o outro lado”, “FAERIE SOIRÉE” tem uma batida que lembra bossa nova, conferindo à faixa um ambiente acolhedor e eufórico que envolve Melanie em magia. Há um sentido de comunidade que nos hipnotiza, incita-nos a dançar e Melanie sente-se acompanhada.

Os acordes delicados de “LIGHT SHOWER” são uma declaração de amor à sensação descrita por várias pessoas com experiências de quase-morte como raios de sol que limpam a alma do trauma da vida, segundo Melanie. Estes raios de sol podem também ser humanos, aquelas pessoas da nossa vida que nos provocam as mesmas emoções acima descritas.

“BATTLE OF THE LARYNX”  aborda dois estilos de pessoas em conflicto – uma que se exalta facilmente e eleva o seu tom de voz, dizendo pouco com sentido e outra que ouve silenciosamente, respondendo ponderadamente e com calma.

Vemos laivos da Melanie de 2015 com a faixa “THE CONTORNIONIST”, que sonoramente se assemelha tal e qual a uma faixa que não tenha entrado em “Cry Baby”. Esta narra os esforços e posições desconfortáveis em que as pessoas se colocam enquanto numa relação amorosa para agradar x parceirx, mas com uma componente física – conseguimos ouvir o som de ossos a partirem-se durante a música inteira. O uso de sons de fundo ou de pequenas melodias que enfatizam a temática das músicas são uma característica frequente nas faixas de Martinez.

“MOON CYCLE” fala sobre um assunto ainda tabú em 2023 – a menstruação, aludindo a relações sexuais durante a mesma. Melanie frisa o encantamento do fenómeno ao compará-lo com doce de morango, que adquire uma componente mística quando descrito com tanto carinho e respeito, numa tentativa de quebrar o pudor à volta do tema. É ainda nesta faixa que se especula uma resposta directa a uma afirmação da faixa “Revival” de Oliver Tree, publicamente conhecido como sendo o seu ex-namorado. Mas claro; essa conclusão fica à descrição do ouvinte.

As pressões que a sociedade acresce á população feminina são refutadas em “NYMPHOLOGY”, que se revolta contra todas as expectativas (masculinas) criadas pela mesma: ser uma “manic pixie dream girl” (um arquétipo cinematográfico que caracteriza uma mulher, por norma cis, que tem traços quirky e fora do vulgar, passando essa invulgaridade também pela sua aparência física) ou uma mulher-mãe, que trata o parceiro como um filho e suprime todas as suas dores e frustrações para si mesma. Nesta música Melanie recusa-se a “lamber as feridas” de alguém, promovendo a auto-suficiência emocional. No fim desta faixa temos um interlúdio à faixa “EVIL” denominado de “Amulet” – nome não apresentado na track list – que vazou em 2021, em conjunto com outras faixas que acabaram por entrar no álbum na mesma. Neste, Melanie reafirma o seu valor como pessoa, equiparando-se a pedras preciosas, num flow com cariz rap.

“WOMB” é a faixa final do álbum, documentando a espera da fada antes da sua reencarnação noutra vida. A letra fala disso mesmo – dos preparativos para o seu aguardado nascimento e do sofrimento que uma mãe passa para trazer alguém ao mundo. No final da faixa, é possível ouvir-se “Life is death, is life, is death, is life, is…”, contribuindo para um loop perfeito com o início desta experiência encantadora que é “PORTALS”, algo feito intencionalmente pela cantora-compositora, sublinhando a importância do ciclo da vida.
Durante “PORTALS” Melanie passou por um processo de recapitular a sua vida passada e a sua forma humana; cantou sobre as suas dores emocionais e, ao fazê-lo, fechou esses capítulos, ajudando os ouvintes a fazerem o mesmo com as suas experiências passadas. Não precisamos de morrer fisicamente para compreender as palavras de Melanie nem as emoções que estas suscitam.

Portals, uma viagem temática

Composto por 13 músicas, “PORTALS” trata-se de uma viagem cuja temática é a vida depois da morte, para a qual a artista se preparou ao ler livros sobre o assunto e vários testemunhos reais de hipnoterapia e experiências de quase-morte. Neste caso, Melanie remete também às várias vidas que parece vivermos na mesma vida física, despedindo-se assim de “Cry Baby” e da sua temática infantil.

“PORTALS” fecha o ciclo de Cry Baby, que é composto por 3 álbuns (“Cry Baby”, “K-12” e agora, “PORTALS”). Coloquemos as coisas desta forma: se “Cry Baby” consiste num nascimento e numa apresentação de primeiras vezes e se considerarmos “K-12” como o processo que consiste na fase de experimentações e da nossa subsequente evolução pessoal, podemos então concluir que “PORTALS” se trata da digestão das memórias da vida humana, num limbo depois da morte, até à nossa subsequente reencarnação.

“PORTALS” está disponível desde dia 31 de Março de 2023 em CD, vinil e nas habituais plataformas de streaming, contando com uma versão deluxe com mais 3 faixas adicionais, “POWDER”, “PLUTO” e “MILK OF THE SIREN”.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico.
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