Às vezes, olho em meu redor e gosto de atentar nas pessoas que passam por mim. Observo-as, ainda que tente disfarçar, e tento criar-lhes um perfil, uma vida. Decidir o que fazem, do que gostam, com quem se dão. Se são casadas, se têm filhos, em que trabalham, onde vivem. É possível que seja uma mania sem sentido, mas, nestas coisas, cada um com a sua. Às vezes, quando tenho mais informação, chego a espantar-me com as personagens com que me cruzo e concluo que, nem nos meus melhores dias, conseguiria criar um perfil assim. Não há criatividade – ou pelo menos eu não conheço – que possa competir com a riqueza existencial de algumas dessas pessoas. Inatingível o nível de generosidade e de entrega, nem nos meus maiores delírios lá chegaria. Assim, volto a observar. E maravilhada, sinto-me verdadeiramente feliz por existirem pessoas assim, sem me importar com a minha incapacidade de criação.
Conheci-a causalmente numa associação de protecção a animais abandonados. Partilhávamos interesses comuns e rapidamente percebi a gigantesca pessoa que ali existia. Ambas defendíamos a adopção. Parece-me quase cruel gerar ninhadas de raça, a um nível que excede muito a necessidade de manter a raça pura, enquanto existem rafeiros sem fim, abandonados nas ruas, ou menos mal, em associações, que tanto necessitam de um lar. A adopção é a nossa grande campanha, mas há níveis diversos da mesma. Há os que adoptam bebés, que é o nível mais comum: porque se ensina, porque cresce com a família, porque os filhos são pequenos, porque são tão fofinhos. Depois há os que, cientes do trabalho e da energia de um bebé, mas também à menor taxa de adoptabilidade de animais mais velhos, preferem um animal adulto, mais calmo e menos dado a surpresas em termos de tamanho ou temperamento. E há o nível supremo, e é nele que ela se situa, em que adopta, ou é fat (família de acolhimento temporário) de um animal em fim de vida, muitas vezes sentenciado.
A minha admiração por estas pessoas atinge a escala máxima. O que leva uma pessoa, entre outras escolhas fáceis, a preferir um animal com idade avançada, com as limitações acrescidas da idade e, não bastando, com doenças incuráveis ou terminais?
Há pessoas que parecem ter uma missão. Quando os recolhem e os trazem para sua casa, onde muitas vezes coexistem outros animais, sabem bem o que levam. É uma opção consciente, sabem que terão cuidados extra, rotinas de medicação, tratamentos, consultas, para além dum dia-a-dia de vigilância e proximidade com aquele ser frágil. Sabem que não será fácil. Sabem também que se apegam a um ser que poderá partir em curto prazo. Têm consciência que poderão, eventualmente, ter de decidir sobre a eutanásia. Estão racionais ao ponto de ter que se anular e deixá-los partir, quando a vida já não lhes for encantadora e leve, e antes lhes penetre os pulmões ou o coração, pesada e acutilantemente.
Há quem julgue que não haveria necessidade disto, que tudo se resolveria com uma eutanásia precoce. Contudo, os animais em fim de vida têm muitas vezes características que talvez se relacionem: por um lado, não conheceram um lar. Por outro, são de uma energia intrínseca, de uma curiosidade pelo desconhecido, e de um olhar feliz a cada dádiva de amor. Eu própria convivi com um cão que, quase sem área pulmonar útil, com extensa dificuldade de respiração, tinha sempre uns olhos brilhantes de retorno ao mundo: eram as caminhadas que adorava, ainda que longe da sua saúde de outrora. Era a surpresa dos cheiros duma casa, que nunca conhecera. O espanto com os espelhos, com o elevador, enfim, um mundo novo que tardiamente conheceu. É um motivo de extrema felicidade ver que há ainda neles – enquanto houver – um tremendo prazer de viver. E sendo possível conceder-lho, porque não?
As pessoas que a isso se propõem não são pessoas ricas, pessoas com condições extraordinárias de tempo e espaço. E que fossem, não é isso o importante. São pessoas que se esquecem do seu umbigo e sentem uma alegria imensa em viver para os outros, em fazer a diferença na vida deles. São pessoas dotadas duma tal capacidade de ultrapassar o sofrimento, que não deixam de socorrer animais (ou pessoas, não importa) para se defenderem da dor. Pelo contrário, estão conscientes que essa dor que sentem é um mal menor, face ao bem que podem proporcionar ao outro. É uma dor útil, combativa. Às vezes, lembro-me de pessoas que não querem voltar a ter um animal porque já sofreram a perda de outro. E os outros animais que poderiam usufruir desse amor? E o que diriam estas pessoas, que já sofreram perdas várias, perdas esperadas, sem termo, e se renovam em mais um animal que lhes cruza o caminho? Serão imunes à dor? Ou têm um propósito maior?
Encontrei-a num destes dias e vinha com um cão velhote, 17 anos, crânio magro, pelo esbranquiçado, numa capinha de flanela.
Apresentou-mo e, quando mais uma vez lhe digo que a admiro pelo que faz e que já fez anteriormente, ela responde, com a simplicidade de quem é puro, que entre a sua matilha estava vago o lugar do cão em tratamento paliativo. Já faz parte do seu dia, da sua estrutura, por isso, nem sequer pensou duas vezes e trouxe-o para casa. Ela é médica de formação, o que talvez ajude. Poderá ajudar em termos técnicos, avaliação de situação, mas para mim não é isso. Eu, civil no tema, sei ver claramente quando um cão ainda está entre nós: ele tem prazer em viver. E enquanto isso existir, ela fará tudo para o mimar.
No dia em que isso não acontecer e em que ele partir, por si mesmo ou com recurso à veterinária, ela aplicará em si a pomada, enfaixar-se-á com ligaduras, para se proteger da dor. Só assim garantirá que está curada e apta a fazer o mesmo por outro que, entretanto, lhe cruze o caminho.
Porque ela sabe, e cada vez mais, que foram eles que lhe ensinaram, que a dor cede, como acontece sempre que existe amor.