Uma pilha de corpos a arder. Uma vila destruída. Pessoas desalojadas. É com esta imagem que Jacques Audiard nos introduz na vida de 3 refugiados que fogem da guerra civil do Sri Lanka fingindo ser uma família. A realidade despida de artifício, crua. Um retrato assustador e verdadeiro das consequências de uma guerra que durante 25 anos assolou o Sri Lank, e uma realidade cada vez mais próxima de nós. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2015, “Dheepan” é um filme extraordinário que chega aos circuitos das salas de cinema nacionais demasiado tarde.
Nos arredores de Paris, Dheepan e a sua nova família tentam esquecer os traumas da guerra, mas vêem-se novamente envolvidos num ambiente hostil, num bairro engolido pela violência e controlado pelo tráfico de droga. Num choque de culturas, Audiard conjuga duas realidades sociais em tempos em que criar consciência para a situação dos refugiados é cada vez mais urgente.
A história da adaptação familiar ocupa um lugar de destaque sem se sobrepor ao propósito cultural do filme. No meio das adversidades, os sentimentos das personagens têm uma importância notória para as suas novas vidas e os laços entre elas vão-se intensificando com o desenvolver da história, envolvendo o espectador na construção de uma família.
A acção maioritariamente lenta do filme deixa brilhar as emoções fortes que ele nos transmite, com imagens de difícil absorção que dificultam a indiferença. Os jogos de luzes em constaste com a escuridão, como a cena do título, dão a “Dheepan” um visual alternativo, não muito habitual em filmes de temáticas mais sérias.
Audiard realça o lado mais pessoal do filme com planos de pormenor em movimentos do corpo das personagens, como as mãos e o olhar, que destacam os pensamentos e sentimentos das personagens. O movimento de Dheepan no meio da poeira e do caos é o culminar de todas as emoções. Uma cenas obscura e forte, onde o som dos tiros ganha um lugar de destaque associado aos demónios do passado da personagem. Entre armas e sangue, ele reencontra os seus traumas. E é também nesse exacto momento em que se liberta. Uma cena esteticamente e psicologicamente marcante, incapaz de nos deixar indiferentes.
“Dheepan” causa desconforto. Mas um bom desconforto. O tipo de desconforto que é capaz de nos pôr a reflectir, sobre o filme e sobre os problemas que ele retrata. O tipo de desconforto que nos deixa com vontade de comentar, de discutir. O tipo de desconforto que nos leva a reflectir sobre nós mesmos. Tal como disse, “Deephan” chegou demasiado tarde aos cinemas portugueses, e talvez seja porque os portugueses não gostam, precisamente, desse tipo de desconforto, que só o bom cinema é capaz de causar.
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